Ruptura premiada

Vitória de Le Clézio no Nobel de literatura consagra política e literariamente uma obra que valoriza a aventura e as preocupações filosóficas emanadas de narrativas aparentemente simples


João Paulo
Do Estado de Minas

O escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, de 68 anos, é o prêmio Nobel de Literatura de 2008. Foi escolhido, de acordo com o comunicado da Academia Sueca, porque é um “escritor de ruptura, da aventura poética e do êxtase sensual. É um explorador da humanidade além e abaixo da civilização reinante”. Não se trata de uma justificativa protocolar. A definição pelo nome do romancista, que há anos faz parte da lista dos favoritos, se dá em meio às polêmicas declarações do secretário permanente da academia, Horace Engdahl, que, na semana passada, afirmou que os norte-americanos eram muitos isolados para merecer a distinção e competir com a Europa em matéria de literatura. Além de equivocada, inculta e infeliz, a declaração tirou parte do brilho e da independência do prêmio mais importante das letras mundiais.

Por isso, a bela escolha de Le Clézio precisa ser entendida com duplo julgamento, o literário e o político, categorias que, aliás, sempre fizeram parte da história do Nobel. No campo da arte literária, Le Clézio é um autor com obra rica e diversificada. Contista, ensaísta e, sobretudo, romancista, nunca teve medo de ousar. Sua estréia literária, aos 23 anos, com Le procès-verbal, lhe deu o Prêmio Renaudot. Na primeira fase de sua carreira, com influências da escola do nouveau roman (novo romance), fez experimentos narrativos e se aproximou do tema dos limites entre a razão humana e a loucura. O estilo sempre clássico e límpido é enganadoramente simples, com preocupações filosóficas emergindo de narrativas de histórias aparentemente singelas.

A obra de Le Clézio, como de resto sua vida, vai se dirigindo para a ampliação das referências culturais. Ele se torna um pesquisador e viajante, com sensibilidade destacada para questões espirituais e religiosas. Seus livros passam a tratar de processos pessoais de busca humana (o mundo da infância e a identidade perdida) e sagrada (o paraíso perdido). Le Clézio, distante do etnocentrismo típico dos europeus, viajou muito pela África, América Latina e Oceania. Viveu parte da infância na África, onde o pai trabalhou como médico, e se apaixonou em seguida pelo México e pelo Panamá, onde ainda passa temporadas. Essa movimentação, física e de alma, se reflete em seus livros.

E o que é literário se torna político. A abertura à diferença é hoje uma das mais destacadas formas de contestação do pensamento único e da globalização que nivela por baixo a amplitude humana. E nisso o romancista, mais que um teórico, é um militante artístico. O destaque da academia ao comportamento de “ruptura e exploração” é, assim, uma resposta às críticas de excessivo centralismo europeu nas decisões do comitê do Nobel. Reprimendas mais que merecidas. De fato, basta acompanhar as últimas escolhas para identificar o padrão: desde a vitória do japonês Kenzaburo Oe, em 1994, nove dos selecionados foram europeus, incluindo a britânica Doris Lessing, no ano passado, e o português José Saramago, em 1998.

O olhar de Le Clézio sobre seu continente é de crítica e estranhamento. Nele, os imigrantes tratados com descaso e preconceito são capazes de sobreviver em razão de seus méritos morais, geralmente construídos a partir de suas culturas de origem. Ao mesmo tempo, quando se desloca para outras latitudes, que conhece bem, Le Clézio é capaz de quadros humanos e naturais ricos, dos quais não estão ausentes, entre as preocupações sociais, a questão do meio ambiente, no seu sentido mais amplo e em tom poeticamente elegíaco (sobretudo em Terra amata). Nesse sentido, há certa ligação com a obra de Doris Lessing, Nobel do ano passado, que também retratou a África e manifestou preocupações ecológicas em sua obra de fantasia (série de ficção científica iniciada com Shikasta).

Pé na estrada
Le Clézio nasceu em Nice (Sudeste da França), em 1940. Estudou literatura na França e no Reino Unido. Desde a infância, viajou pelo mundo, primeiro acompanhando os pais (mãe francesa e pai inglês) e depois como quem cumpre seu destino. Admirador de Stevenson e Conrad, autores que escreveram sobre o sentimento de aventura, exílio e distanciamento, Le Clézio sempre destacou a importância de suas experiências passadas na América Central, onde viveu por vários meses, em 1970, junto aos índios. “Mudou toda a minha vida, minhas idéias sobre o mundo da arte, minha maneira de ser com os outros, de andar, de comer, de dormir, de amar e até de sonhar”, disse. Em razão disso, já foi chamado de “índio da cidade” e “escritor nômade”, entre outras tentativas de classificá-lo.

Sua consagração como romancista veio com Désert, que lhe rendeu um prêmio da Academia Francesa. A obra contém alusões a uma cultura perdida no deserto norte-africano, contrastando com uma descrição da Europa pelos olhos de imigrantes. J.M.G. Le Clézio é o 14º francês a receber um Nobel de Literatura – com as ressalvas de Albert Camus (de origem argelina), Jean-Paul Sartre (que recusou o prêmio) e do chinês naturalizado Gao Xingjian. Uma pesquisa feita em 1994 pela revista Lire revelou que 13% dos leitores franceses consideravam Le Clézio o melhor escritor vivo da língua.

Em sua obra, destacam-se os livros La fièvre, L’extase matérielle, Terra amata, Le livre des fuites, La guerre, Onitsha, Etoile errante, Le déluge, Voyages de l’autre côté, Voyage à Rodrigues, Diego et Frida, Révolutions e Ourania. No Brasil, foram traduzidos O deserto, A procura do ouro, A quarentena, Peixe dourado e O africano. Entre os livros mais recentes de Le Clézio está Ballaciner (2007), ensaio pessoal sobre a história do cinema e sua importância na vida do escritor, que parte da relação com os projetores a manivela da infância, passa pelo culto ao cinema na adolescência e chega às experiências adultas desenvolvidas em partes remotas do mundo. Seu lançamento mais recente na França é Ritournelle de la faim.

Le Clézio recebeu a notícia do prêmio em Paris. Ele mora há muitos anos, com a esposa marroquina e as duas filhas, em Albuquerque (Novo México, EUA), mas passa temporadas no Sul da França. O presidente francês Nicolas Sarkozy – que não gosta de imigrantes – não perdeu tempo e elogiou a escolha da academia, salientando que é um prêmio para a língua francesa.

O escritor receberá em 10 de dezembro um cheque de 10 milhões de coroas suecas (1,02 milhão de euros, cerca de R$ 3,4 milhões) na cerimônia de entrega do Nobel.

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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