Congresso de Língua Portuguesa, Brasília, DF – Conferência
Título: Problemas e tendências no trabalho educacional com a língua portuguesa considerando sua condição de língua majoritária no Brasil
Profª. Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnBCOLIP)
www.stellabortoni.com.br
A tradição do trabalho com a língua portuguesa no ensino básico no Brasil tem sido objeto de revisões, principalmente a partir da segunda metade do século passado e é fonte de muitas dúvidas para os professores engajados nessa atividade. As principais dúvidas que os professores costumam verbalizar estão associadas aos seguintes paradoxos aparentes. 1. Por que ensinar português em uma comunidade de fala onde mais de 99% dos indivíduos a têm como língua materna e, como tal, demonstram grande competência no seu uso? 2. Como desenvolver na escola a análise linguística que os PCN de 1998 preveem e ao mesmo tempo evitar o trabalho com a nomenclatura gramatical, a chamada NGB, conforme recomendam os linguistas?
A situação socioecológica do português no Brasil é distinta daquela observada nas outras ex-colônias portuguesas, caracterizadas pela condição de multilinguismo – português, línguas autóctones e línguas crioulas resultantes do contato. Nessas nações, que têm a língua portuguesa como língua oficial, o percentual de falantes de português como língua materna às vezes não chega a 2 dígitos.
O Brasil também é um país plurilíngue, onde se falam cerca de 200 idiomas, dos quais 180 são usados pelos grupos indígenas. Há também quase 30 línguas faladas pelas comunidades descendentes de imigrantes e duas línguas de sinais. O que nos distingue das outras ex-colônias lusas é que, no caso do Brasil, a língua portuguesa assumiu um status de língua de comunicação geral, uma língua franca. Ela é também a língua oficial do país e o código usado em todas as escolas brasileiras para o trabalho pedagógico. A exceção são as escolas indígenas para as quais a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) garantiu o ensino bilíngue. Estima-se que haja hoje 174 mil estudantes indígenas em escolas bilíngues ou multilíngues. Já as escolas monolíngues, que usam o português como código para transmissão de conhecimento, atendem a 53.028.928 milhões de estudantes matriculados no Ensino Básico, de acordo com o senso escolar de 2008 (MEC). Quase a totalidade desses estudantes é falante de português como língua materna e, por isso, faz sentido a pergunta que apresentamos ao início: Por que ensinar português a falantes nativos da língua?
De fato, todo falante nativo de uma língua tem grande competência no seu uso, o que nos levaria a concluir erroneamente que o ensino do português nas escolas brasileiras é dispensável. Nesta palestra, vamos procurar responder a essa questão. A língua portuguesa, como muitos outros idiomas que têm status de língua oficial, experimentou ao longo de sua história de 8 séculos um processo sistemático de codificação e padronização. Desse processo decorre que se amplia a distância e relevam-se as diferenças entre a modalidade oral e a modalidade escrita da língua. A modalidade escrita da língua é muito mais afeita às tradições da retórica e da literatura que definem os modos de falar e escrever considerados mais adequados às situações de formalidade e aos múltiplos gêneros textuais cultivados na cultura de letramento. Define-se então uma agenda de pedagogia linguística: ampliar a competência comunicativa dos estudantes de modo que possam circular por todos os espaços sociolinguísticos com segurança e competência. O acervo que os estudantes trazem em sua competência linguística de oralidade é a base para a implementação da tal pedagogia.
Uma agenda de pedagogia linguística, assim definida , apresenta-se de mais fácil implementação do que nos países multilíngues, no entanto, não tem logrado um bom êxito, especialmente no que concerne à compreensão leitora e à produção de textos coesos que cumpram suas funções comunicativas. Os sistemas de avaliação, nacionais, como a Prova Brasil, ou estaduais, como SIADE, no DF e o SARESP, em São Paulo e, ainda, os internacionais, como o PISA, aplicados desde o final da última década, trazem resultados persistentemente desanimadores em relação ao desempenho de tarefas linguísticas por nossos estudantes. Cabe aqui então cuidarmos da segunda pergunta: Será que a política nacional de ensino de português está equivocada em seus pressupostos ao enfatizar o trabalho com a gramática em sala de aula? Será que a competência leitora e o trato com a produção textual, de rendimento tão precário na nossa escola, poderiam beneficiar-se de uma revisão radical nos objetivos da disciplina, revisão essa que começaria por valer-se da competência dos alunos na oralidade? Prossegue por aí esta nossa reflexão.
No Brasil herdamos uma tendência a valorizar em demasia a gramática normativa, que tem sido objeto até de legislação federal, como a Lei nº 5765 de 18 de dezembro de 1971, que aprovou alterações na ortografia da língua; o Decreto nº 6583, de 29 de setembro de 2008, que promulgou o Acordo Ortográfico de 1990 e, especialmente, a Portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959, do MEC, que propôs a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), que está completando 50 anos.
A NGB, desde então, ganhou status de conteúdo programático em todos os níveis de ensino. Ensinar português passou a ser sinônimo de ensinar gramática, em detrimento de um trabalho pedagógico que favoreça a competência comunicativa dos alunos, habilitando-os a desempenhar, com eficiência e segurança, qualquer tarefa comunicativa, na língua oral ou escrita, que se lhes apresente na sua vida social e profissional.
Quando os linguistas criticam a gramática normativa estão considerando dois fatos: o primeiro é essa séria distorção na nossa cultura escolar, que confunde o ensino da língua com a memorização de terminologia gramatical. O segundo é a ignorância de que se ressentem as normas prescritivas em relação ao processo de evolução natural da língua e aos estudos descritivos, basedos em metodologias mais atualizadas.
Partilhamos o entendimento já expresso por muitos colegas de que a sistematização de uma terminologia gramatical pode ser um instrumento útil no trabalho escolar de reflexão e análise da língua, de sua estrutura e usos, na fala, na leitura e na escrita. É importante, todavia, que a terminologia gramatical não se torne um fim em si mesma e que seja de fato empregada como recurso na sistematização da análise linguística.
Se a terminologia gramatical for vista, como deve ser, como um apoio para a aprendizagem dos modos de falar e modos de escrever que ainda não fazem parte do repertório do falante, temos de aduzir uma terceira questão: “Que conceitos sistematizados na NGB seriam de relevância na pedagogia da língua portuguesa no Brasil, considerando suas peculiaridades sociolinguísticas?”
Para responder a essa questão, retomamos alguns pressupostos que já visitaram esta nossa palestra:
O ensino e aprendizagem da língua portuguesa na escola têm de levar em conta que os educandos já são falantes competentes nos registros ou estilos informais da língua, diferentemente de nações multilíngues, onde as crianças chegam à escola falando línguas distintas da língua que é usada como código escrito, para a transmissão do acervo de conhecimentos letrados na educação escolar;
Na análise linguística desenvolvida na escola têm de ser priorizados os fatos da língua que são distintos nas modalidades oral e escrita. Em outras palavras, o ponto de partida da pedagogia da língua portuguesa no Brasil devem ser as distinções entre os modos coloquiais de falar e os modos formais de falar e escrever;
Como a comunicação oral e escrita se processa por meio de textos completos e significativos, os fatos da língua que vão adquirir relevância para uma pedagogia são os relacionados à textualidade, mais propriamente os processos de coesão e coerência textuais;
O trabalho com a análise linguística na escola deve pautar-se por uma abordagem que seja incidental, holística e indutiva:
Ela é incidental porque no trabalho pedagógico toda a oportunidade de se apresentar um fato linguístico, introduzindo-o, comentando-o ou relacionando-o a conhecimentos anteriores, deve ser aproveitado;
Ela é indutiva porque as sistematizações sobre a estrutura da língua e os seus usos são adquiridos pelo processo indutivo. O estudante vai familiarizando-se com os fatos linguísticos em enunciados que permeiam seus usos da língua, seja na interação oral, seja nos processo de leitura e escrita. Alguns desses enunciados já fazem parte de seu repertório; outros são novos e serão objeto de seu processo de aprendizagem.
Outros enunciados, ainda, e talvez esses devam merecer um foco especial, são aqueles enunciados que se apresentam na língua de mais de uma forma ou variante. Frequentemente essas variantes são associadas a valores sociossimbólicos distintos e o estudante terá de aprender a selecionar essas formas concorrentes dependendo de várias condições que presidem à enunciação, em especial as expectativas de seu interlocutor – ouvinte ou leitor;
Finalmente, ela é holística, porque os fatos da língua não deveriam ser trabalhados pedagogicamente de forma isolada. Cada evento de fala que enseja uma atividade de análise linguística não deve ficar circunscrito a um único fenômeno. Outras observações podem ser oportunas, sejam elas relacionadas à dimensão sintagmática do enunciado, sejam elas relacionadas à sua dimensão paradigmática.