Analfabetismo e alfabetismo funcional no Brasil


por Vera Masagão Ribeiro*

A definição sobre o que é analfabetismo vem sofrendo revisões nas últimas décadas. Em 1958, a Unesco definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler ou escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a Unesco sugeriu a adoção do conceito de alfabetismo funcional. É considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida. Em todo o mundo, a modernização das sociedades, o desenvolvimento tecnológico, a ampliação da participação social e política colocam demandas cada vez maiores com relação às habilidades de leitura e escrita. A questão não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever, mas também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades. Isso quer dizer que, além da preocupação com o analfabetismo, problema que ainda persiste nos países mais pobres e também no Brasil, emerge a preocupação com o alfabetismo, ou seja, com as capacidades e usos efetivos da leitura e escrita nas diferentes esferas da vida social.

A capacidade de utilizar a linguagem escrita para informar-se, expressar-se, documentar, planejar e aprender cada vez mais é um dos principais legados da educação básica. A toda a sociedade e, em especial, aos educadores e responsáveis pelas políticas educacionais, interessa saber em que medida os sistemas escolares vêm respondendo às exigências do mundo moderno em relação ao alfabetismo e, além da escolarização, que condições são necessárias para que todos adultos tenham oportunidades de continuar a se desenvolver pessoal e profissionalmente.

No meio educacional brasileiro, letramento é o termo que vem sendo usado para designar esse conceito de alfabetismo, que corresponde ao literacy, do inglês, ou ao littératie, do francês, ou ainda ao literacia, em Portugal.

Índices e critérios de medida
No século 20, as taxas de analfabetismo entre os brasileiros com 15 anos ou mais decresceram de 65% em 1920 para 13% em 2000. Esse decréscimo resulta da expansão paulatina dos sistemas de ensino público, ampliando o acesso à educação primária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tal como se faz em outros países, sempre apurou os índices de analfabetismo com base na auto-avaliação da população recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever. Pergunta-se se a pessoa sabe ler e escrever uma mensagem simples. Seguindo recomendações da Unesco, na década de 90, o IBGE passou a divulgar também índices de analfabetismo funcional, tomando como base não a auto-avaliação dos respondentes, mas o número de séries escolares concluídas. Pelo critério adotado, são analfabetas funcionais as pessoas com menos de quatro anos de escolaridade. Com isso, o índice de analfabetismo funcional no Brasil chega perto dos 27%, segundo o Censo 2000.

Mas ter sido aprovado na 4ª série garante o alfabetismo funcional? A pergunta não tem resposta categórica, pois o conceito é relativo, dependente das demandas de leitura e escrita existentes nos contextos e das expectativas que a sociedade coloca quanto às competências mínimas que todos deveriam ter. É por isso que, enquanto nos países menos desenvolvidos se toma o critério de quatro séries escolares, na América do Norte e na Europa toma-se oito ou nove séries como patamar mínimo para se atingir o alfabetismo funcional. E, mesmo já tendo estendido a escolaridade de oito ou até 12 séries para praticamente toda a população, muitos países norteamericanos e europeus continuam preocupados com o nível de alfabetismo da população, tendo em vista, principalmente, as exigências de competitividade no mercado globalizado. O grau de escolaridade atingido já não satisfaz como critério de alfabetismo.

Por um lado, é cada vez mais patente que os resultados de aprendizagem dos sistemas de ensino são muito desiguais e, além disso, os governos estão interessados em saber quanto a população adulta encontra oportunidades de desenvolver as habilidades adquiridas na escola, mantendo a capacidade de aprender.

Com esse tipo de preocupação, na década de 90, muitos países desenvolvidos começaram a realizar pesquisas amostrais para verificar de forma direta, por meio da aplicação de testes, os níveis de habilidades de leitura e escrita da população adulta. O principal programa internacional é articulado pelo OCDE, o International Adult Literacy Survey, do qual participam mais de 40 países. Nesses estudos, o foco não é o analfabetismo, mas a insuficiência das habilidades de leitura e escrita da população alfabetizada. A dicotomia analfabeto x alfabetizado cede lugar para o interesse em determinar e comparar níveis de habilidade de leitura e escrita.

Na América Latina e no Brasil, em particular, a questão tem características específicas e mais complexas. Aqui, enfrentamos ao mesmo tempo os problemas novos e os antigos. O analfabetismo absoluto ainda atinge milhões de brasileiros e precisa ser solucionado com políticas voltadas à superação da pobreza e da exclusão. Ao mesmo tempo, é preciso melhorar o desempenho dos sistemas de ensino e elevar a qualificação da força de trabalho em todos os níveis, tendo em vista a participação nos setores de ponta da economia mundializada e o fortalecimento das instituições democráticas.

Os compromissos necessários para um Brasil alfabetizado
Os dados sobre o alfabetismo funcional confirmam que a educação básica é o pilar fundamental para promover a leitura, o acesso à informação, a cultura e a aprendizagem ao longo de toda a vida. Assim, para que tenhamos um Brasil com níveis satisfatórios de participação social e competitividade no mundo globalizado, um primeiro compromisso a ser reafirmado é com a extensão do ensino fundamental de pelo menos oito anos a todos os brasileiros, independentemente da faixa etária, com oferta flexível e diversificada aos jovens e adultos que não puderam realizá-lo na idade adequada.

É preciso também reconhecer que os resultados da escolarização em termos de aprendizagem ainda são muito insuficientes e que um eixo norteador para a melhoria pedagógica na educação básica deve ser o aprimoramento do trabalho sobre a leitura e a escrita. É preciso superar a visão de que esse é um problema apenas dos professores alfabetizadores e dos professores de Português. Grande parte das aprendizagens escolares depende da capacidade de processar informações escritas, verbais e numéricas, relacionando-as com imagens, gráficos etc. Todos os educadores precisam atuar de forma coordenada na promoção dessas habilidades, contando com referências claras quanto a estratégias e estágios de progressão desejáveis ao longo do processo, para que os avanços possam ser monitorados. Com apoio dos gestores, todos os professores devem agir sistemática e intensivamente no sentido de desenvolver nos alunos hábitos e procedimentos de leitura para estudo, lazer e informação, assim como proporcionar o acesso e a manipulação das fontes: bibliotecas com bons acervos de livros, revistas e jornais, computador e internet.

Finalmente, é preciso reconhecer que a promoção do alfabetismo não é tarefa só da escola. Os países que já conseguiram garantir o acesso universal à educação básica estão conscientes de que é necessário também que os jovens e adultos encontrem, depois da escolarização, oportunidades e estímulos para continuar aprendendo e desenvolvendo as suas habilidades. Os programas de dinamização de bibliotecas e inclusão digital são fundamentais e devem ser levados a sério pelas políticas públicas. Para a população empregada, o próprio local de trabalho pode ser potencializado como espaço de aprendizagem e, nesse caso, os empresários têm uma participação importante nos compromissos a ser assumidos.

As empresas podem oferecer e incentivar o uso de acervos de jornais, revistas e livros, assim como de terminais de acesso à internet para fins de pesquisa, além de ampliar as oportunidades de participação em programas educativos relacionados ao desenvolvimento pessoal e profissional dos trabalhadores, dando especial atenção aos que têm menor qualificação e necessitam de mais apoio para superar a exclusão cultural.

*Vera Masagão Ribeiro é Doutora em Educação pela PUC-SP, coordenadora de programas da ONG Ação Educativa. Coordena desde 2003 a pesquisa INAF.

Fonte: Boletim INAF julago, 2006
Categoria pai: Seção - Notícias

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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