São Paulo, Parábola Editorial 2005, Páginas 19 a 29

DESIGUALDADES SOCIAIS, VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA E O PROCESSO EDUCACIONAL

 

Uma primeira versão deste capítulo foi publicada em 1981 com o títuloDiversidade lingüística: uma nova abordagem do processo educacional” na Revista Brasileira de Tecnologia, Brasília, CNPq, 12(14):33-8. O capítulo volta-se, principalmente para a discussão das características da sociedade brasileira como uma comunidade de fala. Levantam-se algumas questões que vão ter seqüência nos próximos capítulos III e IV.

 

No Brasil, ainda não se conferiu a devida atenção à influência da diversidade lingüística no processo educacional. A Ciência Lingüística vem, timidamente, apontando estratégias que visam a aumentar a produtividade da educação e a preservar os direitos do educando. Essa contribuição será tanto mais efetiva se fundamentada na convicção de que a situação sociolingüística brasileira apresenta peculiaridades que a distinguem da de outros países. As atividades científicas na área não se podem restringir, portanto, a uma simples importação. É indispensável o desenvolvimento de um aparato teórico-metodológico adequado à realidade nacional.

Não existe no Brasil uma longa tradição de estudos lingüísticos. Os trabalhos pioneiros, no segundo quartel do século XX, pautavam-se, principalmente, por modelos portugueses e franceses. (Ver Naro sd). A partir da década de 60, a lingüística nacional cresceu e passou a receber maior influência norte-americana, com a divulgação da teoria gerativo-transformacional. São características dessa escola a busca de universais lingüísticos e a ênfase na competência dos falantes. Suas bases epistêmicas e seu arcabouço metodológico favoreciam uma fácil adaptação para a língua portuguesa de análises elaboradas originalmente para o inglês.

Paralelamente ao desenvolvimento da teoria gerativa, crescia nos Estados Unidos e Europa a Escola Sociolingüística, que se ocupa principalmente das diversidades nos repertórios lingüísticos das diferentes comunidades, conferindo às funções sociais que a linguagem desempenha a mesma relevância que até então se atribuía tão-somente aos aspectos formais da língua. (Ver capítulos XI e XIII nesta coletânea)

A introdução de componentes de natureza social e funcional no objeto de estudos da Lingüística tornou muito temerária a simples importação de modelos teóricos, pois já não se trata apenas da transposição da análise de uma língua para outra. As diferenças na estrutura social, nas normas e valores culturais, que condicionam o comportamento lingüístico, têm de ser devidamente consideradas.

Neste capítulo, apontam-se algumas características peculiares da realidade sociolingüística brasileira que a diferenciam da realidade de outros países. Esse pequeno inventário sugere a necessidade no Brasil do estudo e revisão criteriosos das teorias sociolingüísticas correntes e do desenvolvimento de metodologias adequadas.

 A maioria dos estudos sociolingüísticos modernos volta-se para três tipos de situações: sociedades multilíngües ou multidialetais; comunidades falantes de línguas crioulas ou pós-crioulas; dialetos ou variedades urbanas eou étnicas em países industrializados onde a alfabetização é universal. Nenhuma dessas correntes parece perfeitamente adequada à descrição dos fenômenos sociolingüísticos no Brasil.

Com relação à primeira, temos que considerar o fato de ser o Brasil um dos poucos países monolíngües de grande extensão territorial e vasta população. Somente pequenos contingentes dessa população – comunidades indígenas e descendentes de imigrantes europeus e asiáticos – não têm o português como língua materna e exibem variados graus de bilingüismo. O estudo da situação lingüística dessas comunidades não pode ser negligenciado. Mas o fenômeno, devido às suas dimensões, não compromete a característica de monolingüismo no país. Há que se entender, porém, que monolingüismo não significa homogeneidade lingüística. Essa questão será amplamente discutida ao longo deste livro.

Tratar o problema da dialetação no Brasil com o aparato teórico-metodológico usado na descrição de um continuum pós-crioulo parece não ser também uma proposta apropriada.

Mesmo considerando-se fértil a hipótese de existência de um português pidginizado[1] nos dois primeiros séculos de colonização, como resultado do contato entre línguas aborígines brasileiras, línguas crioulas de base portuguesa, importadas com o braço escravo, e dialetos lusitanos, há que se limitar sua influência às variedades rurais, que se conservaram isoladas durante muito tempo. O português citadino no Brasil manteve-se sempre muito próximo do modelo de além-mar e as diferenças que se registram, principalmente na fonologia e no léxico, explicam-se pela grande distância que separa o Brasil de Portugal (Silva Neto, 1977; Bortoni-Ricardo, 1985).

Resta, então, a terceira opção: a aplicação da teoria e dos métodos desenvolvidos para a análise da dialetologia urbana em nações industrializadas. No decorrer deste capítulo pretende-se demonstrar que essas teorias, assim como as referidas anteriormente, precisam ser criteriosamente revistas para que se possam adequar à realidade sociolingüística nacional. Em vez de uma simples importação de métodos analíticos, recomenda-se o estudo rigoroso da teoria sociolingüística, o que permitirá o surgimento de metodologias ajustadas ao objeto específico de estudo.

Os problemas de adequação teórico-metodológica já iniciam na própria caracterização da sociedade brasileira como uma comunidade de fala. Os estudiosos propõem uma distinção básica entre sociedades tradicionais, rigidamente estratificadas, e sociedades modernas, relativamente abertas (Fishman, 1972a). Nas primeiras, há uma gama de papéis sociais bem definidos e não permeáveis. A essa estratificação social rígida corresponde uma estratificação lingüística igualmente rígida, que implica um repertório verbal amplo e diferenciado. As variedades que o compõem conservam-se discretas e tanto a mobilidade nos estratos sociais como o acesso às variedades de prestígio são severamente restritos.

Em oposição, a sociedade moderna é caracterizada por maior permeabilidade de papéis sociais e, conseqüentemente, menor heterogeneidade no repertório verbal. A mudança constante de papéis sociais permite maior fluidez entre variedades lingüísticas de natureza social e estilística. Como requisito para a mobilidade social, garante-se um amplo acesso à norma supra-regional, de maior prestígio.

Como se situa o Brasil diante dessas duas tipologias? Muito já se discutiu sobre a existência de contrastes profundos neste país, onde convivem contemporaneamente estágios diversos de desenvolvimento histórico, tecnológico e cultural; essa situação reflete-se na caracterização da sociedade brasileira enquanto comunidade de fala.

Das sociedades ditas tradicionais conserva o Brasil pelo menos duas características: a grande variação no repertório verbal e o acesso limitado à norma padrão. Apresenta, todavia, a característica da fluidez e permeabilidade típica das sociedades modernas, que resulta numa situação de um gradiente de variedades lingüísticas, muito diferente da dialetação discreta e compartimentada das sociedades de castas.

Entre os muitos mitos que se criaram e se corporificaram no Brasil está o da homogeneidade lingüística. À análise leiga e generalizada, as diferenças lingüísticas diatópicas, distribuídas no espaço geográfico, e diastráticas, distribuídas no espaço social, parecem ser de pequena relevância já que não impedem a inteligibilidade. A realidade, entretanto, é bem outra. As diferenças de natureza fonológica e morfossintática que distinguem, por um lado, a linguagem rural da urbana e, por outro, os diversos dialetos sociais, também referidos como socioletos, são profundas. Todo o sistema flexional nos verbos, nos pronomes e nos nomes apresenta múltiplas possibilidades de variação, principalmente quando a categoria lingüística é redundantemente marcada. Os exemplos são muito numerosos, mas à guisa de ilustração, vejamos a regra de concordância nominal, que é uma regra obrigatória na variedade padrão da língua. Os determinantes, isto é, artigos e pronomes, têm de concordar com o substantivo que determinam, em gênero e número no sintagma nominal.

Exemplo: Todos aqueles meninos.

A marca de plural aparece três vezes no sintagma.

Nas variedades populares o plural pode ocorrer apenas uma vez:

Exemplo: “Aqueis menino tudo.

Quanto à crença da perfeita inteligibilidade entre as variedades do Português no Brasil, os lingüistas têm mostrado que se trata de um mito (ver Bagno, 1999). Em artigo publicado na Revista Tempo Brasileiro, em 1984, relatei diversos episódios de dificuldades de compreensão mútua entre falantes de antecedentes rurais e professores e alunos universitários. Como ilustração, transcrevo um diálogo entre a entrevistadora (E) e uma senhora (S) de origem rural, de 71 anos, que residia na cidade de Brazlândia, no Distrito Federal, desde a idade de 63. A entrevista, que faz parte de um projeto de sociolingüística (Bortoni-Ricardo, 1985:236-7) foi realizada na casa desta última. Há também interferência da filha da dona da casa (FS)[2].

 

1.                 E.   A senhora esteve presente nas duas últimas reuniões da novena?

2.                 S.   Se eu tive???

3.                 E.   É.

4.                 S.   Não.

5.                 E.   A senhora não foi?

6.                 FS.   E a senhora não foi naquela última novena, não?

7.                 S.   Tive na novena, mas não tive presente.

(Bortoni-Ricardo, 1985)

 

Essas diferenças tendem a conservar-se devido ao acesso limitado à ampla e efetiva escolarização. A escola é uma força corretiva e unificadora da língua. Nos países onde a alfabetização é universal, há muitas décadas, as variedades populares não desapareceram, pois existem fatores psicossociais que favorecem sua conservação. As diferenças entre essas variedades e a língua padrão tendem a ser, porém, de menor amplitude, restringindo-se ao âmbito da fonologia – da pronúncia – e a alguns traços morfossintáticos.

Pode-se representar a força padronizadora da língua padrão por um vetor que se denominará vetor de assimilação. Nos países desenvolvidos, são fatores principais da assimilação o prestígio da língua culta e a ação das agências que a implementam, dentre as quais se destaca a escola. Opõe-se a essa força outro vetor, o da manutenção das variedades não-padrão, que se apóia principalmente em fatores de natureza psicossocial, pois essas variedades tendem a ser associadas à dimensão de solidariedade nas relações intragrupo e passam a funcionar como símbolo de coesão e identidade. O fenômeno adquire maior relevância no caso das minorias étnicas nas comunidades urbanas. As variedades sociais e étnicas são marcadas por alguns traços que atuam como uma peça de resistência à assimilação. Os falantes usam esses recursos de variação da língua para enfatizar sua identidade, alternando-os com traços equivalente da norma padrão quando as circunstâncias o exigem (Esta questão será retomada com detalhe no capítulo VIII desta coletânea).

Na situação brasileira encontra-se a mesma força padronizadora representada pelo vetor de assimilação. Entretanto o principal fator que se lhe contrapõe parece ser o acesso restrito à língua padrão. Os fatores de lealdade lingüística, que têm grande influência nas sociedades industrializadas, têm possivelmente menor influência no fenômeno Brasil, no estágio atual de expansão do português culto no país, embora não possa ser desconsiderado nos grupos sociais em que a questão étnica assume grande relevância, como no caso das nações indígenas.

Com relação a essa peculiaridade da situação sociolingüística brasileira convém desenvolver mais algumas considerações. Pesquisas de dialetologia urbana realizadas nos Estados Unidos e na Europa indicaram que os diversos estratos sociais de uma comunidade de fala, embora apresentem diferenças quanto à freqüência no emprego de alguns traços lingüísticos estigmatizados, tendem a demonstrar uma avaliação uniforme desses traços. Isto é, classes mais baixas da sociedade exibem em sua linguagem uma incidência maior de variáveis lingüísticas não-padrão mas, quando submetidas a testes que avaliam atitudes, reconhecem o caráter estigmatizado dessas variáveis, julgando-as com severidade. Esse isomorfismo nas reações valorativas decorre da pressão prescritiva da escola e do prestígio da língua culta. Para se atingir tal homogeneidade de interpretação referencial é indispensável que toda a população seja escolarizada.(Ver Bortoni-Ricardo, Gomes e Malvar 2002)

No Brasil, tem-se um grande contingente da população cuja economia lingüística é predominantemente oral e que, portanto, não tem acesso à força padronizadora da língua escrita. O extensivo analfabetismo e a precariedade da instrução escolar, que afetam essa população, impedem tanto o acesso à língua padrão real, efetivamente usada pelas classes favorecidas, como à língua padrão ideal, ou seja, o conjunto de critérios referenciais que determinam os padrões de correção e aceitabilidade da língua (Rodrigues, 1968; Castilho,1978; ver também a coletânea de artigos Norma Lingüística, organizada por Bagno, 2001).

Todas essas circunstâncias contribuem para caracterizar o repertório verbal da comunidade brasileira como muito amplo e diferenciado.

Já se observou que as variedades lingüísticas no Brasil não são compartimentadas. Caracterizam-se por uma relativa permeabilidade e fluidez que se pode representar com um continuum horizontal, em que as variedades se distribuem sem fronteiras definidas. A variação ao longo desse continuum vai depender de fatores diversos, tais como a mobilidade geográfica, o grau de instrução, a exposição aos meios de comunicação de massa bem como a outras agências implementadoras da norma culta e urbana, ao gênero, grupo etário, mercado de trabalho do falante, etc.

A esse continuum, que representa a variação diatópica (rural x urbana) e social, deve-se, por razões didáticas, acrescentar outro, que represente variações funcionais, estilísticas, que se interseccionam com aquelas. A escolha de um determinado grau de formalidade na fala depende basicamente do papel social que o falante desempenha a cada ato de interação verbal. se verificou que as sociedades variam quanto à amplitude e fluidez da gama de papéis sociais à disposição do indivíduo. Em qualquer circunstância, porém, há pelo menos três fatores determinantes dessa seleção: os participantes da interação, o tópico da conversa e o local onde ela se processa. O falante ajusta sua linguagem, variando de um estilo informal a um estilo cerimonioso a fim de se acomodar aos tipos específicos de situações. Observe-se, entretanto, que os registros ou estilos a que uma pessoa tem acesso são uma função de sua posição na hierarquia social. (Halliday, 1978). Assim sendo, os indivíduos que não têm bastante competência na língua padrão, também se vêem severamente limitados na sua participação em eventos de fala públicos e formais[3]. É dentro dessas restrições que se deve interpretar a característica de fluidez e permeabilidade no repertório verbal que é encontrada na sociedade brasileira.

O fenômeno da estandardização da língua no Brasil é outro relevante aspecto da teoria sociolingüística que precisa ser interpretado nas suas características singulares. O processo de padronização de uma variedade da língua – geralmente aquela falada pelas classes de maior prestígio e poder político – acompanhou, na maioria dos países, a formação e consolidação do estado como nação soberana. Na Europa, os diversos países foram instituindo e legitimando a norma padrão de sua língua a partir do século XV, quando começaram a intensificar-se a urbanização e o nacionalismo político, com a substituição do regime feudal pelo capitalismo. As colônias européias na América já receberam as línguas que herdaram com uma norma culta em vias de consolidação (ver Biderman, 1973)

A análise do processo de padronização de uma língua implica dois conjuntos de critérios: propriedades lingüísticas relacionadas às características intrínsecas da língua padrão, por exemplo, a sua codificação, e propriedades de natureza psicossocial, referentes à ideologia vigente, às atitudes dos falantes em relação à língua e ao prestígio que atribuem às diversas variedades.

É um ponto consensual em lingüística que a norma padrão de qualquer língua possui preeminência sobre as demais variedades em decorrência de fatores históricos e culturais que determinam a sua imposição e legitimação. Não se reconhece nela qualquer valor inerente ou intrínseco, mas, sim, atributos que se desenvolveram ao longo de um processo sócio-histórico de natureza institucional.

Essa postura teórica tem sérias implicações pedagógicas, já que a lingüística recomenda que a norma culta seja ensinada nas escolas, mas que, paralelamente, se preservem os saberes sociolingüísticos e os valores culturais que o aluno já tenha aprendido antes, no seu ambiente social. Resguarda-se, assim, o direito que o educando possui à preservação de sua identidade cultural específica, seja ela rural ou urbana, popular ou elitista. A aprendizagem da norma culta deve significar uma ampliação da competência lingüística e comunicativa do aluno, que deverá aprender a empregar uma variedade ou outra de acordo com as circunstâncias da situação de fala.

Para que essa política pedagógica obtenha êxito é indispensável, entretanto, que parta de uma análise prévia de certas características de repertório verbal da comunidade de fala.

Giles e Powesland, (1975) propõem uma taxionomia que parece especialmente útil para se corrigirem algumas distorções que já se disseminaram no Brasil.

Eles distinguem dois tipos de língua padrão: língua padrão relacionada a contexto (context-related) e língua padrão relacionada a classe social ou status (class-related). A primeira é uma variedade considerada apropriada em certas situações socialmente definidas, geralmente as mais formais e públicas. Não é associada a um determinado grupo social e todos os membros da comunidade têm certo acesso a ela. Para o estabelecimento de tal situação é necessário que as variedades que coexistam na língua sejam funcionalmente distintas, isto é, sirvam a usos e empregos diversos, configurando o que foi denominado diglossia por Ferguson (1959). Nessas circunstâncias, a norma culta ensinada nas escolas não se destina a interações ordinárias e coloquiais, mas a eventos especiais de fala.

Nos países em que a língua padrão é contextualmente condicionada, os falantes têm acesso a, pelo menos, duas variedades – um vernáculo, que é usado sem restrições nos ambientes onde prevalece maior intimidade, e uma variedade padrão, reservada para interação de maior formalidade. Ambos gozam de prestígio, resguardada sua distinção funcional.

Esse é o caso, por exemplo, da Noruega, onde os falantes dispõem de variedades regionais que são usadas sem constrangimento nas interações com pessoas da comunidade e de uma variedade pan-nacional, reservada para determinados eventos de fala e para interações com pessoas estranhas à comunidade (ver Blom & Gumperz, 1972).

A língua padrão relacionada a classe ou a status é definida como a variedade de fala que tem maior prestígio, independentemente do contexto e que caracteriza um grupo social, geralmente o de status socioeconômico e cultural mais alto.

Nessas circunstâncias, as variedades coexistentes não são bem definidas e a mudança de código não é facilmente delineada. Ademais, como observa Haugen (1972) com referência aos Estados Unidos, onde se verifica tal situação, qualquer variedade não-padrão é simplesmente considerada inglês ruim”. O mesmo aplica-se ao caso brasileiro. Qualquer variedade cuja morfossintaxe e o léxico desviam-se do português padrão efetivamente usado é considerada ruim e indesejável, independentemente do contexto em que ocorra.

As distinções entre língua padrão relacionada a classe e língua padrão relacionada a contexto têm sérias implicações na política pedagógica a que se aludiu acima, e não vêm sendo devidamente levadas em conta pelos especialistas no Brasil. Quando a língua padrão é relacionada a status ou classe, a operacionalização da pedagogia que propõe a aquisição de norma culta como um acréscimo de mais uma variedade no repertório verbal do aluno sem prejuízo de outras é muito mais complexa do que no outro caso, por razões de natureza lingüística e de natureza social. Analisemos cada conjunto de fatores separadamente.

Já se verificou como as diferenças lingüísticas socioletais interseccionam-se com diferenças lingüísticas funcionais. O domínio da língua padrão é requisito obrigatório para o desempenho em eventos de fala formais e públicos. Em contrapartida, certos traços que caracterizam socioletos populares são empregados por falantes da língua padrão em situações informais de fala. Dessa forma, funcionam como indicadores de estratificação social da língua e também como marcadores de registro no repertório verbal do indivíduo, o que torna operacionalmente difícil distinguir-se, para efeitos didáticos, estilos coloquiais da língua padrão de algumas variedades não-padrão[4]. Ao aplicar as recomendações dos lingüistas, o professor de português seria levado a tomar decisões arbitrárias no levantamento dos traços não-padrão presentes na linguagem dos seus alunos.

Do ponto de vista social, há que se considerar o estigma associado a traços da linguagem popular que funcionam em detrimento da ascensão social do indivíduo. Diante de tal fato, há duas alternativas: ou a sociedade aprende a aceitar a linguagem popular sem restrições, ou os falantes dessas variedades promovem o ajuste de sua fala aos padrões de prestígio. A primeira é naturalmente a mais desejável. Contudo, quando a língua padrão é relacionada a classe e não a contexto, tal alternativa torna-se uma possibilidade remota.

Devido a essas pressões sociais, a preservação da variedade popular no repertório lingüístico do aluno é uma questão que está ainda a merecer muito estudo e reflexão. A seguinte vinheta, citada por Farias (1999) ilustra bem as dificuldades associadas ao ensino de estilos monitorados da língua na escola a crianças provenientes de redes sociais com economia lingüística predominantemente oral (ver capítulos XII e XVIII nesta coletânea). A professora de Língua Portuguesa estava ministrando sua aula a uma oitava série, em uma cidade do Distrito Federal, quando foi interpelada por uma aluna que fez esta pungente observação:

“professora, num dianta ocê ensiná essas coisa pra nóis: nóis num aprende mermu porque lá em casa a gente falemu diferente e se nóis chegá lá falanu assim todo mundo vai mangá de nóis, vai dizê que nóis fiquemu doido.”

 

A implementação da política pedagógica recomendada pelos lingüistas requer, portanto, o estudo cuidadoso das variações correntes na língua portuguesa. A análise deverá distinguir traços graduais de traços descontínuos. Os primeiro determinam uma estratificação gradual ao longo do continuum socioletal e funcionam também como marcadores de registro. Os traços descontínuos são privativos de variedades que estão sujeitas a forte estigmatização na sociedade como um todo. (Mais explicações sobre os traços graduais e descontínuos se encontram no capítulo IV desta coletânea).

Tal distinção deve basear-se em pesquisas lingüísticas da ocorrência real dos traços em questão nos diversos estratos sociais, considerando-se ainda a variação condicionada pelo contexto situacional. Alem disso a aferição acurada do significado social das variáveis deve ser feita por meio de estudos psicossociais que se encarreguem de determinar o grau de avaliação negativa que os traços recebem nos diversos estratos da sociedade. Poderá ser levantado, assim, o perfil sociolingüístico do educando, o que servirá de subsídio para a formulação de uma política educacional que atenda às seguintes condições: (i) respeitem-se as peculiaridades culturais do aluno, poupando-o do perverso processo de conflito de valores e de insegurança lingüística; (ii) garanta-se-lhe acesso à língua padrão, permitindo-lhe mobilidade social; (iii) seja facilmente operacionalizável.

Em resumo, foram levantados neste capítulo os seguintes pontos:

1 - estudo da situação sociolingüística no Brasil não pode depender da simples importação de metodologias desenvolvidas alhures. Há fenômenos peculiares nessa situação que vão implicar a revisão criteriosa dos modelos teóricos e a conseqüente adaptação da metodologia, o que não pode prescindir de criatividade;

2 - a comunidade de fala brasileira apresenta características de sociedades tradicionais associadas a características de sociedades modernas;

3 - o repertório verbal em nossa comunidade é relativamente amplo e diferenciado e as variedades populares tendem a conservar-se em virtude do acesso restrito de parte da população tanto à língua padrão real como à língua padrão referencial;

4 - no Brasil, a língua padrão é associada ao grupo social que goza de melhor status. Quaisquer desvios do padrão real tendem a receber avaliação negativa, que varia de grau dependendo de os traços determinarem uma estratificação gradual ou descontínua;

5 - muitos traços fonológicos e morfossintáticos característicos de variedades populares fazem também parte dos estilos informais no repertório verbal dos falantes de língua padrão. Este fato, aliado ao fato expresso no item anterior, torna especialmente difícil a operacionalização de uma política educacional que vise tanto à divulgação da língua culta como à preservação das variedades populares;

6 - a efetiva operacionalização de uma política educacional igualitária e democrática requer estudo criterioso dos fenômenos sociolingüísticos, analisados em suas peculiaridades, por meio de métodos adequados.

 



[1] Pidgin é um termo usado na Sociolingüística para conceiturar uma língua com estrutura gramatical, léxico e amplitude estilística marcadamente reduzidos, se comparada a outras línguas e que não é língua materna de nenhuma comunidade. Os pidgins são formados por duas comunidades de fala engajadas no esforço de se comunicarem, cada uma dela aproximando-se aos traços mais salientes da língua da outra. Os pidgins se crioulizam quando se tornam a língua materna de uma geração nascida no ambiente pidginizado. Para mais informações ver Crystal, 1985 e Trudgill, 1984 e capítulo III desta coletânea.

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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