São Paulo, Parábola Editorial 2005, Páginas
DESIGUALDADES SOCIAIS, VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA E O PROCESSO EDUCACIONAL
Uma
No Brasil, ainda não se conferiu a devida atenção à influência da diversidade lingüística no processo educacional. A Ciência Lingüística vem, timidamente, apontando estratégias que visam a aumentar a produtividade da educação e a preservar os direitos do educando. Essa contribuição será tanto mais efetiva se fundamentada na convicção de que a situação sociolingüística brasileira apresenta peculiaridades que a distinguem da de outros países. As atividades científicas na área não se podem restringir, portanto, a uma simples importação. É indispensável o desenvolvimento de um aparato teórico-metodológico adequado à realidade nacional.
Não existe no Brasil uma longa tradição de estudos lingüísticos. Os trabalhos pioneiros, no segundo quartel do século XX, pautavam-se, principalmente, por modelos portugueses e franceses. (Ver Naro sd). A partir da década de
Paralelamente ao desenvolvimento da teoria gerativa, crescia nos Estados Unidos e Europa a Escola Sociolingüística, que se ocupa principalmente das diversidades nos repertórios lingüísticos das diferentes comunidades, conferindo às funções sociais que a linguagem desempenha a mesma relevância que até então se atribuía tão-somente aos aspectos formais da língua. (Ver capítulos XI e XIII nesta coletânea)
A introdução de componentes de natureza social e funcional no objeto de estudos da Lingüística tornou muito temerária a simples importação de modelos teóricos, pois já não se trata apenas da transposição da análise de uma língua para outra. As diferenças na estrutura social, nas normas e valores culturais, que condicionam o comportamento lingüístico, têm de ser devidamente consideradas.
Neste capítulo, apontam-se algumas características peculiares da realidade sociolingüística brasileira que a diferenciam da realidade de outros países. Esse pequeno inventário sugere a necessidade no Brasil do estudo e revisão criteriosos das teorias sociolingüísticas correntes e do desenvolvimento de metodologias adequadas.
A maioria dos estudos sociolingüísticos modernos volta-se para três tipos de situações: sociedades multilíngües ou multidialetais; comunidades falantes de línguas crioulas ou pós-crioulas; dialetos ou variedades urbanas eou étnicas em países industrializados onde a alfabetização é universal. Nenhuma dessas correntes parece perfeitamente adequada à descrição dos fenômenos sociolingüísticos no Brasil.
Com relação à primeira, temos que considerar o fato de ser o Brasil um dos poucos países monolíngües de grande extensão territorial e vasta população. Somente pequenos contingentes dessa população – comunidades indígenas e descendentes de imigrantes europeus e asiáticos – não têm o português como língua materna e exibem variados graus de bilingüismo. O estudo da situação lingüística dessas comunidades não pode ser negligenciado. Mas o fenômeno, devido às suas dimensões, não compromete a característica de monolingüismo no país. Há que se entender, porém, que monolingüismo não significa homogeneidade lingüística. Essa questão será amplamente discutida ao longo deste livro.
Tratar o problema da dialetação no Brasil com o aparato teórico-metodológico usado na descrição de um continuum pós-crioulo parece não ser também uma proposta apropriada.
Mesmo considerando-se fértil a hipótese de existência de um português pidginizado[1] nos dois primeiros séculos de colonização, como resultado do contato entre línguas aborígines brasileiras, línguas crioulas de base portuguesa, importadas com o braço escravo, e dialetos lusitanos, há que se limitar sua influência às variedades rurais, que se conservaram isoladas durante muito tempo. O português citadino no Brasil manteve-se sempre muito próximo do modelo de além-mar e as diferenças que se registram, principalmente na fonologia e no léxico, explicam-se pela grande distância que separa o Brasil de Portugal (Silva Neto, 1977; Bortoni-Ricardo, 1985).
Resta, então, a terceira opção: a aplicação da teoria e dos métodos desenvolvidos para a análise da dialetologia urbana em nações industrializadas. No decorrer deste capítulo pretende-se demonstrar que essas teorias, assim como as referidas anteriormente, precisam ser criteriosamente revistas para que se possam adequar à realidade sociolingüística nacional. Em vez de uma simples importação de métodos analíticos, recomenda-se o estudo rigoroso da teoria sociolingüística, o que permitirá o surgimento de metodologias ajustadas ao objeto específico de estudo.
Os problemas de adequação teórico-metodológica já iniciam na própria caracterização da sociedade brasileira como uma comunidade de fala. Os estudiosos propõem uma distinção básica entre sociedades tradicionais, rigidamente estratificadas, e sociedades modernas, relativamente abertas (Fishman, 1972a). Nas primeiras, há uma gama de papéis sociais bem definidos e não permeáveis. A essa estratificação social rígida corresponde uma estratificação lingüística igualmente rígida, que implica um repertório verbal amplo e diferenciado. As variedades que o compõem conservam-se discretas e tanto a mobilidade nos estratos sociais como o acesso às variedades de prestígio são severamente restritos.
Em oposição, a sociedade moderna é caracterizada por maior permeabilidade de papéis sociais e, conseqüentemente, menor heterogeneidade no repertório verbal. A mudança constante de papéis sociais permite maior fluidez entre variedades lingüísticas de natureza social e estilística. Como requisito para a mobilidade social, garante-se um amplo acesso à norma supra-regional, de maior prestígio.
Como se situa o Brasil diante dessas duas tipologias? Muito já se discutiu sobre a existência de contrastes profundos neste país, onde convivem contemporaneamente estágios diversos de desenvolvimento histórico, tecnológico e cultural; essa situação reflete-se na caracterização da sociedade brasileira enquanto comunidade de fala.
Das sociedades ditas tradicionais conserva o Brasil pelo menos duas características: a grande variação no repertório verbal e o acesso limitado à norma padrão. Apresenta, todavia, a característica da fluidez e permeabilidade típica das sociedades modernas, que resulta numa situação de um gradiente de variedades lingüísticas, muito diferente da dialetação discreta e compartimentada das sociedades de castas.
Entre os muitos mitos que se criaram e se corporificaram no Brasil está o da homogeneidade lingüística. À análise leiga e generalizada, as diferenças lingüísticas diatópicas, distribuídas no espaço geográfico, e diastráticas, distribuídas no espaço social, parecem ser de pequena relevância já que não impedem a inteligibilidade. A realidade, entretanto, é bem outra. As diferenças de natureza fonológica e morfossintática que distinguem, por um lado, a linguagem rural da urbana e, por outro, os diversos dialetos sociais, também referidos como socioletos, são profundas. Todo o sistema flexional nos verbos, nos pronomes e nos nomes apresenta múltiplas possibilidades de variação, principalmente quando a categoria lingüística é redundantemente marcada. Os exemplos são muito numerosos, mas à guisa de ilustração, vejamos a regra de concordância nominal, que é uma regra obrigatória na variedade padrão da língua. Os determinantes, isto é, artigos e pronomes, têm de concordar com o substantivo que determinam, em gênero e número no sintagma nominal.
Exemplo: Todos aqueles meninos.
A marca de plural aparece três vezes no sintagma.
Nas variedades populares o plural pode ocorrer apenas uma vez:
Exemplo: “Aqueis menino tudo.
Quanto à crença da perfeita inteligibilidade entre as variedades do Português no Brasil, os lingüistas têm mostrado que se trata de um mito (ver Bagno, 1999). Em artigo publicado na Revista Tempo Brasileiro, em 1984, relatei diversos episódios de dificuldades de compreensão mútua entre falantes de antecedentes rurais e professores e alunos universitários. Como ilustração, transcrevo um diálogo entre a entrevistadora (E) e uma senhora (S) de origem rural, de 71 anos, que residia na cidade de Brazlândia, no Distrito Federal, desde a idade de
1. E. A senhora esteve presente nas duas últimas reuniões da novena?
2.