A praga dos fónicos
Quando se deixar de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as
causas do insucesso estarão erradicadas
(José Pacheco - Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila
das Aves, Portugal)
Numa escola brasileira, vi uma primeira série repetir a ladainha: o Dadá
comeu xuxu e o vôvô viu a uva. Frases a roçar a imbecilidade desanimam o
mais animado dos alunos. Filhas dilectas do chamado método fónico,
condenam muitas crianças ao ódio por tudo o que seja livro. Como escapar à
praga do analfabetismo, se as escolas iniciam as crianças na aventura de
ler, forçando-as a um coro de melopeias sem sentido?
Desde há algum tempo, os prosélitos do método fónico tentam influenciar
uma opinião pública ansiosa por soluções mágicas. A argumentação é pobre e o
registro é o do senso comum pedagógico. Para afirmar o seu extremismo, um
fónico afirmou, num jornal, que os países desenvolvidos já perceberam que
o método fónico é mais eficiente do que todos os outros (...) Está provado
cientificamente. O articulista não informava quais eram as provas
científicas, mas rematava: os defensores do método fónico ganharam
visibilidade, após alguns países desenvolvidos terem revisto a ênfase dada
no passado ao método global, usado por muitos construtivistas.
Gostei do eufemismo ênfase... No passado, mas quando? A expressão
alguns países aporta alguma ambiguidade - quantos países? Gostaria de
conhecer o elenco desses países desenvolvidos, com a indicação das escolas
praticantes da linha construtivista, bem como dos países considerados não
desenvolvidos onde a dita linha tenha sido (efectivamente!) adoptada.
Porque, assim como há fiéis que assumem serem não-praticantes das suas
religiões, parece haver construtivistas não-praticantes, fundamentalistas
fónicos e, sobretudo, muita confusão. Conto dezenas de anos como professor
e posso afirmar que o método fónico foi hegemónico e bem visível nos países
ditos desenvolvidos e nos países ditos não desenvolvidos. E as consequências
desse método, infelizmente, também...
Os fónicos dizem que o Brasil está remando contra a maré dos países
desenvolvidos. Desenganem-se, porque a maré é a mesma. Não se trata de
introduzir novos métodos, ou de ressuscitar métodos velhos. O que está em
jogo é algo mais subtil.
Fui professor especialista em alfabetização (estarão os leitores a
cogitar: como pode um professor do fundamental ser especialista? Se muitas
escolas dispõem de especialistas em artes, ou na educação de crianças
especiais, muito mais se justifica a existência de um especialista num
domínio tão exigente como o da alfabetização e letramento. Por que razão se
insiste no disparate de considerar que o professor generalista é um
especialista em todas as áreas do currículo?)
Não estou fazendo o apelo a guetos disciplinares das séries iniciais. Estou
apelando a que se contemple o ritmo de cada criança, o estilo de
inteligência de cada criança, a sua cultura de origem, o repertório
linguístico de cada criança...
Aquilo que está em causa não é a adopção do método A, ou do método B - o que
está em causa é a necessidade de as escolas reconfigurarem as suas práticas
para atenderem à diversidade. É urgente reconfigurar o espaço e o tempo
escolar à medida de cada criança, para que não se imponha a todas e a cada
uma o mesmo modo de aprender.
Quando os professores deixarem de ensinar a todos como se fossem um só,
quase todas as causas de insucesso estarão erradicadas. Com fónico, ou sem
fónico...
Educação, n. 121, maio 2007.
[NA praga dos fónicos
Quando se deixar de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as
causas do insucesso estarão erradicadas
(José Pacheco - Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila
das Aves, Portugal)
Numa escola brasileira, vi uma primeira série repetir a ladainha: o Dadá
comeu xuxu e o vôvô viu a uva. Frases a roçar a imbecilidade desanimam o
mais animado dos alunos. Filhas dilectas do chamado método fónico,
condenam muitas crianças ao ódio por tudo o que seja livro. Como escapar à
praga do analfabetismo, se as escolas iniciam as crianças na aventura de
ler, forçando-as a um coro de melopeias sem sentido?
Desde há algum tempo, os prosélitos do método fónico tentam influenciar
uma opinião pública ansiosa por soluções mágicas. A argumentação é pobre e o
registro é o do senso comum pedagógico. Para afirmar o seu extremismo, um
fónico afirmou, num jornal, que os países desenvolvidos já perceberam que
o método fónico é mais eficiente do que todos os outros (...) Está provado
cientificamente. O articulista não informava quais eram as provas
científicas, mas rematava: os defensores do método fónico ganharam
visibilidade, após alguns países desenvolvidos terem revisto a ênfase dada
no passado ao método global, usado por muitos construtivistas.
Gostei do eufemismo ênfase... No passado, mas quando? A expressão
alguns países aporta alguma ambiguidade - quantos países? Gostaria de
conhecer o elenco desses países desenvolvidos, com a indicação das escolas
praticantes da linha construtivista, bem como dos países considerados não
desenvolvidos onde a dita linha tenha sido (efectivamente!) adoptada.
Porque, assim como há fiéis que assumem serem não-praticantes das suas
religiões, parece haver construtivistas não-praticantes, fundamentalistas
fónicos e, sobretudo, muita confusão. Conto dezenas de anos como professor
e posso afirmar que o método fónico foi hegemónico e bem visível nos países
ditos desenvolvidos e nos países ditos não desenvolvidos. E as consequências
desse método, infelizmente, também...
Os fónicos dizem que o Brasil está remando contra a maré dos países
desenvolvidos. Desenganem-se, porque a maré é a mesma. Não se trata de
introduzir novos métodos, ou de ressuscitar métodos velhos. O que está em
jogo é algo mais subtil.
Fui professor especialista em alfabetização (estarão os leitores a
cogitar: como pode um professor do fundamental ser especialista? Se muitas
escolas dispõem de especialistas em artes, ou na educação de crianças
especiais, muito mais se justifica a existência de um especialista num
domínio tão exigente como o da alfabetização e letramento. Por que razão se
insiste no disparate de considerar que o professor generalista é um
especialista em todas as áreas do currículo?)
Não estou fazendo o apelo a guetos disciplinares das séries iniciais. Estou
apelando a que se contemple o ritmo de cada criança, o estilo de
inteligência de cada criança, a sua cultura de origem, o repertório
linguístico de cada criança...
Aquilo que está em causa não é a adopção do método A, ou do método B - o que
está em causa é a necessidade de as escolas reconfigurarem as suas práticas
para atenderem à diversidade. É urgente reconfigurar o espaço e o tempo
escolar à medida de cada criança, para que não se imponha a todas e a cada
uma o mesmo modo de aprender.
Quando os professores deixarem de ensinar a todos como se fossem um só,
quase todas as causas de insucesso estarão erradicadas. Com fónico, ou sem
fónico...
Educação, n. 121, maio 2007.
[