A cultura da repetência em debate

Fonte: Carta na Escola

por Miguel G. Arroyo, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Professor de Pós-Graduação da PUC-MG, foi secretário-adjunto de Educação de Belo Horizonte entre 1993 e 1997

Se a escola tenta se libertar da função segregadora da repetência, a sociedade lembra dos docentes que essa é sua função social: segregar, reprovar

Comecemos com uma indagação: por que está tão arraigada em nosso sistema educacional e em nossa sociedade a cultura da repetência e da reprovação?  Por que um ritual tão persistente se incorporou em nossa cultura social, docente e escolar? As escolas, por décadas, têm insistido em reprovar altas porcentagens de crianças, adolescentes, jovens e adultos até da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O que é mais instigante é que a mídia, a sociedade e até as famílias exigem dos docentes e das escolas que reprovem. Por quê? Porque a reprovação e a seleção viraram um traço cultural incorporado em nossa tradição e nos valores sociais, daí a dificuldade de superá-la. As mudanças das culturas e dos valores coletivos são lentas, exigem tempo e determinação política.

Avancemos para outra indagação: superar a cultura de repetência e reprovação será um problema apenas dos docentes e das escolas? Não. Porque a cultura da repetência e da reprovação tem raízes profundas na nossa cultura política, está arraigada em nossa formação social. Dados persistentes mostram que os reprovados e segregados são em sua maioria os filhos e as filhas dos setores populares. Os índices de reprovação e repetência concentram-se entre crianças, adolescentes e jovens pobres e negros das periferias urbanas e dos campos, os mesmos coletivos reprovados na sociedade ao longo de nossa formação socioeconômica, política e cultural.

Os docentes e as escolas não inventaram a reprovação desses coletivos, apenas introjetaram e reproduziram a cultura social e política que, por séculos, vem reprovando e segregando esses coletivos populares. A quase universalização da escolarização fundamental não significou a sua democratização porque os avanços políticos continuam convivendo com processos retrógrados de segregação e seletividade social. Neste avanço limitado da cultura democrática, espera-se que o sistema educacional, sobretudo público, continue apegado a velhos processos de seletividade, segregação e retenção dos setores populares. Em nossa cultura política o povo não será incluído enquanto não provar que é bom de bola, na escola e no trabalho. A desconfiança em relação ao povo é um traço perverso de nossa cultura política que exige da escola ser seletiva. Quando a escola tenta se libertar dessa função segregadora, a sociedade reage lembrando aos docentes que essa é sua função social, segregar, reprovar.

Em que momento estamos? O que há de promissor é que nesta década os movimentos sociais populares se fizeram presentes na área política, mais conscientes de seus direitos. O sistema educacional é pressionado pelos setores populares para ser mais democrático, menos segregado. A cultura de reprovação-repetência passou a ser um incômodo para as escolas e os docentes que se sentem incomodados com a reprodução de rituais segregadores e seletivos. Isso mostra que há avanços significativos no repensar e superar a cultura da reprovação-repetência.

Podemos dizer que a cultura democrática, anti-reprovação-retenção, está avançando mais nas escolas e em seus docentes do que na sociedade e na cultura política. Por que esse apego à cultura da reprovação escolar? O argumento é que se as escolas não reprovarem, a qualidade do ensino cai e os alunos não estudam. Supõe-se que a ameaça da reprovação será um mecanismo pedagógico eficaz para manter interesse pelo estudo e a disciplina; conseqüentemente, para a qualidade do ensino público.

A sociedade continua apegada a velhas referências pedagógicas: “A letra com sangue entra”, “a ameaça é a melhor pedagogia para educar filhos e alunos”. É através do medo da reprovação e da repetência que os alunos se interessarão pelas nossas lições ainda que não consigam despertar seu interesse?

Incorporar, não segregar
Os profissionais da educação básica aprenderam que essas “pedagogias” não funcionam. Nós, pais, também aprendemos que ameaçando e castigando não educamos. Por que a sociedade e a mídia continuam a exigir das escolas públicas que continuem ameaçando os alunos com a reprovação? Para que estudem e sejam disciplinados?

No momento em que os docentes caminham para novas pedagogias e didáticas mais inclusivas e menos segregadoras, mais interativas e democráticas, seria de esperar que a sociedade e a cultura política repensassem seu apego a ultrapassados processos de ensinar e educar. A segregação na sociedade e no sistema escolar é a reminiscência de um passado segregador dos setores populares e de seus filhos e filhas. Mede-se a qualidade da escola pela sua capacidade de incorporar e não de segregar os coletivos historicamente marginalizados. Aí se radica a qualidade democrática e social da escola pública. A reação vem logo: de que adianta passar os alunos se não aprenderam?

Essa é uma questão debatida nas escolas. Que alternativas profissionais estão sendo buscadas? As escolas dão maior centralidade ao conhecimento e ao respeito aos processos de aprender. A cultura da reprovação levava as escolas a pensar que ensinando boas lições e com bons métodos os alunos teriam de aprender. Não aprendendo, a solução seria reprová-los para ensiná-los de novo. Nessa lógica simplista faltava a preocupação por estudar os complexos processos em que a mente humana aprende. Uma professora comentava: “Depois que superamos a cultura da reprovação-repetência, passamos a estudar mais sobre os processos de aprender dos educandos”.

O avanço no conhecimento da mente humana e dos sofisticados mecanismos que entram nos processos de aprender está levando os profissionais do ensino-aprendizagem a ser mais cuidadosos e respeitosos com os alunos que eram classificados como tendo problemas de aprendizagem. Um caminho esperançoso para superar a cultura de reprovação-repetência acontecerá se os docentes se aprofundarem nas teorias da aprendizagem. Acompanhar com profissionalismo os educandos em seus processos de aprender em vez de reprová-los, retê-los e truncar esses processos.

Outra frente de avanço: respeitar os tempos de aprender, os tempos culturais, mentais, socializadores, os tempos de formação dos educandos. A teoria pedagógica mostra que a mente humana tem de ser respeitada em cada tempo humano: infância, adolescência, juventude, vida adulta. Conseqüentemente, será antipedagógico reter jovens e adolescentes nas primeiras séries porque suas mentes, culturas, vivências, não são mais de crianças. Se não aprenderam a ler e escrever quando crianças, a obrigação da escola será não retê-los com crianças, mas acompanhá-los para que aprendam com suas mentes, culturas e vivências de adolescentes ou de jovens e adultos.

O respeito aos tempos humanos sociais, culturais e mentais de aprendizagem de formação vem se tornando um consenso nos temas de aprendizagem. A cultura da reprovação contrapõe-se a todos os avanços das ciências e estudos da mente e aos avanços das teorias pedagógicas e de aprendizagem. Continuar defendendo a cultura da repetência e reprovação é, além de antidemocrático, anticientífico e antipedagógico.

Há mais um motivo forte para superar a prática de reprovação-repetência: os custos humanos pagos pelos educandos (as) reprovados e retidos. Crianças, adolescentes e jovens são separados de seus colegas, amizades são truncadas, quebram-se sua auto-imagem e sua auto-estima, sentem-se humilhados. Esses custos humanos em nada contribuem para facilitar e estimular os processos de aprender, de socialização e de formação humana dos educandos, que passam por processos de rupturas de suas identidades na sociedade. Identidades quebradas são mentes bloqueadas para aprender.
Defender a manutenção da repetência-reprovação é um indicador de conservadorismo político, científico e pedagógico.

SAIBA MAIS
Livros
ARROYO, M. Imagens Quebradas: Trajetórias e tempos de alunos
e mestres. Ed. Vozes, Petrópolis, 2004.

 

Categoria pai: Seção - Notícias

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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