Entre as 180 línguas indígenas faladas no Brasil, boa parte está ameaçada de extinção; educação e até a tecnologia são armas na luta pela preservação

RL

Oworu. Hewera. Mikoi. I (e somente i). Eywa. Pusavi. Cada uma dessas seis palavras quer dizer árvore, respectivamente, nos idiomas dos karajá, kokama, sateré-mawé, kuikuro, asurini e arara. E poderíamos enumerar mais quase duas centenas de sinônimos: o Brasil tem 180 línguas indígenas faladas, entre as 225 etnias identificadas até hoje. Muito em relação ao que está na Constituição (que aponta a língua portuguesa como único idioma oficial brasileiro), mas pouco quando se leva em conta o passado. Estima-se que, em 1500, falavam-se nada menos que 1.078 línguas indígenas.

Boa parte dos 180 idiomas sobreviventes está ameaçada de extinção - mais da metade (110) é falada por menos de 500 pessoas. No passado, era comum as pessoas serem amarradas em troncos de árvores quando se expressavam em suas línguas, lembra o cacique Felisberto Kokama, um analfabeto para os padrões de nossa cultura - e um sábio, um dos guardiões da pureza de seu idioma (caracterizado por uma diferença marcante entre a fala masculina e a feminina), lá no Amazonas, no Alto Solimões.

Outro kokama, o professor Leonel, da região do município de Santo Antônio do Içá (AM), mostra o problema atual:

- Nosso povo se rendeu às pessoas brancas pelas dificuldades de sobrevivência. O contato com a língua portuguesa foi exterminando e dificultando a prática da nossa língua. Há poucos falantes, e com vergonha de falar. A língua é muito preconceituada entre nós mesmos.

Mundo perdido

É preciso, antes de mais nada, relembrar que cada idioma não significa apenas uma versão dos demais - mas uma representação própria de um universo cultural.

- Quando uma língua morre, e não tem documentação, perdemos a pecinha de um quebra-cabeça que é a linguagem humana - diz a professora Cristina Martins Fargetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Araraquara).

- É uma experiência diferenciada, milenar. A humanidade inteira perde um pedaço de si, uma parte importante de sua história quando se perde um idioma - define a professora Anna Suely Arruda Cabral, da Universidade de Brasília.

Nem todo mundo concorda com pesquisadores como o francês Claude Hagège, do Collège de France, segundo quem cada língua morta é um modo de pensar que se perde. O professor Eduardo Guimarães, da Unicamp, acredita que interessa à ciência conhecer uma língua que morreu, porque se pode ver nela elementos que explicam um jeito de pensar.

Mas não seria possível supor que há um modo de pensar necessariamente vinculado à língua, pois não existiria uma forma fixa de pensar melhor ou pior, um movimento que iria do positivo ao negativo, ou o contrário. Há alguns séculos, falava-se latim, hoje falam-se as línguas românicas, como o português. Do ponto de vista lingüístico, não se teria perdido nada com a extinção do latim, apenas se ganhou novas línguas. O fato, no entanto, é que as relações entre as línguas é política e a sobrevivência das minoritárias dependem de condições e decisões as mais diversas.

Para Anna Suely, da UnB, a velocidade da perda dos idiomas brasileiros tem sido superior à dos esforços pela preservação. O governo federal, que reconhecidamente vem apostando na formação de professores indígenas, anunciou em setembro um plano de preservação de idiomas indígenas ameaçados, pilotado pelo Museu do Índio. Vinte idiomas, no total. O Museu Nacional participa de um projeto mundial, o Dobes (Documentation of Endangered Languages, ou Documentação de Línguas Ameaçadas), que já registrou, sob uma tecnologia de arquivos multimídia, quatro línguas ameaçadas no Brasil.

Mas é muito comum que um ou outro antropólogo ou lingüista conheça alguns idiomas mais do que as crianças da própria etnia.

- Lingüista não salva línguas. Antropólogo não salva línguas. Quem salva são os índios. Que estejam fortes na sua cultura - explica Anna Suely.

Os índios

A pequena Taía Asurini, de 6 anos, fala um pouco, segundo sua mãe, Mosoropia Asurini. E canta. Morosopia é a única professora entre os membros de sua etnia, no Tocantins.

- Hoje, há três velhos dentro da aldeia que não entendem o português. Estes dias faleceu uma senhora que me ensinou a falar a língua, desde criança. Fiquei muito triste - afirma Mosoropia, que está fazendo, em parceria com a UnB, o Dicionário Asurini.

- Eu me emociono com minha língua - conta ela.

Durante um evento sobre línguas ameaçadas na UnB, Shaya Shawadawa, ou Francisca, chorou após apresentar um canto no idioma dos arara. Entre 460 pessoas da etnia, somente 10 falam e entendem bem o idioma de sua tribo. Ela mesma se exclui dessa lista, pois fala mais ou menos. Ela não falava arara até os 14 anos. Hoje milita na Organização dos Professores Indígenas do Acre. Tenta incentivar e sensibilizar as crianças.

- Hoje elas sabem 22 canções, nomes de aves, animais. Os adultos têm de se esforçar, não falar em português com os filhos, com os netos.

Sinvaldo Wahuka, professor karajá, cobra mais verbas públicas. Ele trabalha na Secretaria de Educação de Goiás e diz que sente falta de levar o índio de lá para cá, trazer professores que saibam cantar, contar histórias.

- O karajá tem a língua específica do cotidiano. Os cantos contêm os mitos, o nosso passado. Hoje a língua do branco está entrando como tempestade, derrubando folhas de palmeira. Nos anos 80, waha significava papai; dos 80 para cá, substituíram por babai.

Leosmar, ou melhor, Tinai, vive em uma terra indígena no Alto Rio Guamá, em Paragominas (PA). Considera tupan a palavra mais bonita em seu idioma. Ele e outros oito professores estiveram em Brasília num workshop, para aprender a ensinar seu idioma de modo mais eficiente.

- Estamos preservando mais, não deixando de ter contato com a sociedade que fala português.

Antigamente, o contato era entendido como o aprendizado de tudo o que era do branco e o esquecimento da própria cultura, diz Tinai. E a cultura dos tembé se manifesta pela língua tenetehára. Que, em bom português, significa a língua verdadeira. (Colaborou Fábio de Castro)

Pelo mundo, uma situação similar

No Canadá e nos Estados Unidos há 175 línguas. Mas só 20 são aprendidas em casa pelas crianças, informa a pesquisadora Leanne Hilton, da Universidade da Califórnia, em Berkeley. O motivo, segundo ela, é econômico.

- Quando a sobrevivência física e econômica está em jogo, as práticas culturais e a língua tornam-se preocupações secundárias. As pessoas escolhem a língua que lhes é mais útil economicamente - diz a norte-americana.

Os exemplos se repetem pelo mundo. O professor peruano Angel Corbera Mori, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), informa que entre os omáguas só há cinco falantes com mais de 70 anos. No Chaco argentino, segundo a pesquisadora Bruna Franchetto, do Museu Nacional (UFRJ), foi documentada a expressão do último falante do idioma dos vilela, em um lugar marcado pelos genocídios.

Línguas feias

Nos Estados Unidos, uma figura foi decisiva para o extermínio de vários idiomas: o coronel Pratt, autor da máxima: Mate o índio, salve o homem. Foi ele quem organizou no século 19 a primeira escola em regime de internato, onde as crianças eram punidas quando falavam as próprias línguas. Segundo Leanne, foi o Movimento pelos Direitos Civis que representou o início de uma conscientização que leva a uma revitalização lingüística, por meio do ensino bilíngüe.

- As escolas diziam aos nativos que suas línguas eram feias, ruins, inúteis. Índios brasileiros de várias etnias descrevem o mesmo em relação à população atual. E há um precedente no campo da alta cultura: padre Vieira chegou a classificar os idiomas indígenas como desarticulados, estúpidos, um aborto da natureza - conta a pesquisadora.

Para Jeanne, a revitalização lingüística coincide com a cultural.

- Se a escola for de imersão a criança se torna fluente na língua. Os hawaino (havaiano) já estiveram quase sem falantes com menos de 50 anos, há 20 anos; agora há milhares de jovens falantes e eles podem aprender o idioma como segunda língua na universidade.

À necessidade de se preservar a língua viva, falante, soma-se a preocupação em se fazer o registro histórico das línguas ameaçadas. À frente do programa de documentação Dobes no Brasil, a italiana Bruna Franchetto, do Museu Nacional, informa que já foram realizados 40 projetos de preservação da língua pelo mundo. A tecnologia desenvolvida pelo Instituto Max-Planck, na Alemanha, disponível em software livre, aposta nas possibilidades multimídia do arquivo de linguagens e na participação das comunidades indígenas como protagonistas desses documentos. (ARS)

Ontem e hoje

Em 1500, antes da chegada dos conquistadores europeus, os indígenas somavam 6 milhões e o país era deles. Foram aniquilados em massa e, na primeira metade do século 20, não passavam de 200 mil: menos de 4% de sobreviventes.

Aos poucos, graças a políticas públicas de exceção, estimuladas por movimentos sociais de minoria, registrou-se um aumento populacional constante.

Hoje, as estatísticas mais respeitáveis estimam que a população indígena no Brasil compõe-se de 400 mil a 500 mil indivíduos, mas não há números exatos. De acordo com o censo populacional do IBGE de 2000, existiriam 734.131 índios brasileiros, mas esse total é questionado, pois foi obtido por informações sobre cor de pele, e não por meio da auto-identificação étnica. (RM)

Preservação depende de lingüistas

Sem peso político e com dificuldade de sobreviverem, línguas indígenas dependem da perseverança de pesquisadores

Estima-se que as línguas morram na razão de 25 por ano. Hoje, há pouco menos de 6 mil vivas. Nesse ritmo, no fim do século, teremos só a metade dos idiomas atuais. Qualquer língua falada por menos de 100 mil pessoas é considerada ameaçada. Todas as línguas e todos os dialetos indígenas no Brasil têm menos de 40 mil falantes.

A maioria (110) das 180 línguas indígenas atuais tem menos de 400 falantes. Outras 60 têm entre 400 e 3 mil pessoas que as usam. Há 12 línguas com mais de 3 mil usuários. Cabem nos dedos de uma só mão as que têm mais de 10 mil falantes: o tikuna, macuxi, terena e kaingang.

Línguas minoritárias, com populações de no máximo mil pessoas, representam três quartos (76%) das nossas línguas indígenas. X têm apenas um falante.

O professor da Unicamp Eduardo Guimarães acredita que a língua com um só usuário, na prática, já morreu. Nesses casos, o falante, diz Guimarães, terá um saber sobre esta língua, mas não a pratica mais. Com as outras pessoas ele vai usar a língua delas e o pesquisador que estuda o idioma será capaz de recolher as estruturas lingüísticas, mas não o funcionamento concreto daquela língua, afirma o professor.

Resistências

Outras tribos chegam a manter uma atividade comum ativa, mas sem usar mais o idioma que as uniu na origem. É de uma tribo que há gerações não fala o próprio idioma que surgiu a primeira doutora indígena do Brasil. Maria Pankararu defendeu em abril o doutorado em lingüística na Universidade Federal de Alagoas. Sua tribo tem 4 mil pessoas em Pernambuco, mas ninguém mais fala o idioma indígena. A pedagoga e historiadora concentrou-se no estudo da ofayé, falada por apenas 11 das 46 índios de uma tribo do interior do Mato Grosso do Sul (vivem no lugar mais 27 brancos de casamentos interétnicos). Maria criou uma cartilha com a gramática da tribo.

Raros, portanto, os casos como o de São Gabriel da Cachoeira (AM), que há exato um ano regulamentou lei que determina três línguas como co-oficiais. Talvez isso só pudesse ter ocorrido naquela cidade. São Gabriel tem maior população indígena do país (73% dos 29,9 mil habitantes). Agora, o uso do nheengatu, do baniwa e do tucano será obrigatório em repartições públicas, escolas, bancos, igrejas, comércio, publicidade, sistema judiciário e meios de comunicação.

As línguas indígenas dependem muitas vezes da ação isolada de lingüistas, como Maria Pankararu, para registrar e difundir idiomas que são apenas falados, cada vez menos falados. Pesquisadores como Aryon Dalllgna Rodrigues, professor do Laboratório de Línguas Indígenas da UnB, acreditam que é alta a necessidade de pesquisas científicas que documentem, analisem, classifiquem e interpretem idiomas cuja maioria só existem no Brasil, e que se assegure condições às tribos de transmitir suas línguas a outras gerações.

Maria Pankararu, a primeira doutora índia do país: incapaz de fazer estudo lingüístico do próprio idioma
Crédito: Folha Imagem

Copiado da CVL




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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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