Brasília, essa desgraceira
Fonte: Veja.com
Não deve haver outro país em que a
Ao lançar o programa Territórios da Cidadania, o mais novo produto de sua superaquecida e superexigida oficina de marketing, o presidente Lula exortou os ministros a viajar pelo país, a seu ver a única maneira de mapear e resolver os problemas. Ficar em Brasília é uma desgraceira só, disse. O historiador José Murilo de Carvalho, em artigo incluído num livro recente (Cultura das Transgressões no Brasil, editado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), escreve: Brasília tornou-se uma corte corrupta e corruptora. Funcionasse o governo no Rio de Janeiro, mensaleiros e assemelhados seriam vaiados nas sessões e ‘ovacionados’ nas ruas. Partindo de premissas diferentes e com motivações diferentes, Lula e José Murilo acabam se encontrando na mesma esquina, ou melhor, na mesma falta de esquina: Brasília. Daqui a dois anos a capital federal estará completando meio século de vida. Meio século! – e até hoje não assentou a poeira da controvérsia que suscita.
Nos Estados Unidos também se fala de Washington. Não há eleição em que não concorra um candidato contra Washington. O da vez é Barack Obama. Quando lhe perguntam por que, com apenas três anos de mandato de senador, já quer pular para a Presidência, ele responde que é melhor fazê-lo enquanto ainda é novo na capital do que quando ela já o tiver estragado. Mas a Washington de que se fala nos EUA é diferente da Brasília de que se fala por aqui. A Washington deles são os viciados costumes políticos. Nossa Brasília vai além: abrange também a localização geográfica e a concepção urbanística. Isso torna o nosso caso possivelmente único. Não deve haver no mundo país em que a capital, inclusive por seu aspecto físico, seja uma questão em si mesma. A combinação da localização, nas lonjuras do Planalto Central, com um plano urbanístico que privilegiou as autopistas, as distâncias e os espaços vazios teria resultado numa cidade tão boa para os conchavos e falcatruas dos detentores do poder quanto ruim para o convívio e a manifestação dos governados.
As razões de Lula e José Murilo são opostas. O que no fundo Lula vê em Brasília é um obstáculo à sua vocação de arengueiro e animador de auditório. Falta-lhe o principal, a platéia. O que José Murilo lamenta é a ausência de algo só parecido porque também tem a forma de seres humanos, mas não é uma simples platéia. Para Lula, falta um coadjuvante dócil ao teatro do poder. Para José Murilo, o déficit é de gente, de clima e de espaços que favoreçam o exercício de cidadania. Onde os dois se encontram é na crítica a Brasília, culpada de não satisfazer nem o político que ama o conforto das multidões, desde que domesticadas e melhor ainda se entusiasmadas, tampouco o historiador que reclama um povo nos calcanhares dos governantes.
A história de Brasília é cheia de paradoxos. Nascida, da prancheta de Lucio Costa, para ser a capital da igualdade, virou a mais desigual das cidades brasileiras. Era para acolher toda a população na uniformidade das superquadras, dos clubes e das corporações alocadas cada qual no seu nicho. Esqueceu dos pobres, no entanto, ou o país esqueceu de enriquecer, e virou a cidade proibida dos pobres expulsos para o submundo das cidades-satélites e favelas. Nascida, dos sonhos de Juscelino, como a capital de uma jovem democracia, acabou consolidada sob a ditadura, como a capital ideal para as decisões isoladas, a dispersão dos descontentamentos e o trânsito dos tanques. No Memorial JK que se ergue em Brasília, um diploma conferido pela Universidade de Coimbra chama o criador da cidade de Iuscelinus, brasiliensis republicae sapientissimus princeps. Quem a consolidou foi Emilius Médici, brasiliensis republicae notabilissimus tyrannus.
É provavelmente um engano pensar que, fosse a capital em outro lugar, as coisas seriam diferentes. Difícil imaginar que nestes tempos de domínio da televisão e de anestesia da política a população vá se dar ao trabalho de cercar os palácios ou assistir às sessões do Congresso. Os desatinos ocorrem também nas administrações locais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e a cobrança aos governantes não é maior do que na capital federal. Mas Brasília leva a culpa. É a ilha da fantasia. Em mais um dos paradoxos que perseguem a capital federal, Juscelino continua sendo o mais amado dos presidentes, herói até de minisséries na TV, mas sua principal obra é vilipendiada como se, ela própria, fosse uma das causas, para alguns até a principal, das infelicidades do país.
No plano simbólico – e este talvez seja o mais doído dos problemas –, Brasília teve a má sorte de encarnar uma utopia. Ela anunciava o futuro. Não por acaso, Juscelino, que era forte nessas coisas de futuro e de utopia, quis revesti-la de uma arquitetura futurista. Brasília era coisa jamais vista, em país algum, tanto na forma como no que representava. Era o anúncio de uma nova era. O futuro que ela anunciava chegou, e é isso aí.
capital seja, ela própria, uma questão