Celebridade no púlpito

por Rosane Pavam – Carta na Escola, Edição 24

Nascido 400 anos atrás, o padre influenciou nossa língua 

Orador imbatível, Antônio Vieira seduziu a realeza e perturbou a Inquisição

Em 1648, trajado de escarlate, cabelo e bigode crescidos, o padre Antônio Vieira caminha pelas ruas da Holanda com o objetivo de integrar os cristãos-novos ao comércio português. Nascido em Lisboa 42 anos antes, assentado na Bahia aos 7 e discípulo jesuíta aos 15, depois de aplaudir a força dos sermões de seus professores, o homem de meia-idade está em Amsterdã às expensas do rei, mas os religiosos e os políticos estranham suas intenções.

Os inimigos dizem que Vieira tem uma amante hebréia, mas isso parece ser um boato ou uma calúnia, já que falamos de um padre. E o que seria um padre no século XVII? Seria alguém com um imenso potencial, um homem que, pela capacidade de comunicar suas iluminações, poderia sonhar com um futuro. Vieira sabe pensar e, mais do que isso, comunicar o que pensa. Escreve antes de dizer, e seu sermão não deixa o oponente de pé. O que faltam a Vieira são posses e fidalguia. Mas, por conta do talento literário hipnótico, ele ultrapassa a imobilidade medieval e faz o que bem entende da vida.

Se está na Holanda como embaixador, em lugar de pregar aos humildes do Brasil, há uma razão. O padre não assenta lugar: ora se vê no Maranhão, ora na Bahia de sua formação, ora na Roma papal, ora em Lisboa, na Corte. Ele precisa se estabelecer onde está a audiência para suas visões. Vieira é um padre e, ao mesmo tempo, mais do que simplesmente um.

“Não há quem queira passar um vintém a Portugal com estas prisões de homens de negócio”, reclamava ele, inconformado com a perseguição aos judeus durante a Inquisição. Duas décadas antes daquele 1648, os heréticos holandeses instalavam-se de vez na rica Pernambuco e ameaçavam crescer dentro dela. O padre acreditava que era urgente negociar com eles ou morrer. No fim, a situação resolveu-se pela morte – dos holandeses, varridos à força do Brasil.

Na quarta-feira 6 de fevereiro, será preciso lembrar que o padre Antônio Vieira nasceu há 400 anos e que isso mudou para sempre nossa história e nossa língua. Ainda que hoje não reconheçamos isso com facilidade, o padre inovou ao utilizar uma escrita direta, de fácil comunicação com o público.

O aspecto mundano, por assim dizer, de sua fala, talvez se ligasse a suas origens. O pai de Vieira, alentejano, fora um assalariado da nobreza, embora tivesse dado um jeito de passar à história como fidalgo. A mãe, sobre a qual Vieira se calava, era “mulher de cor”, de ascendência mourisca, mulata ou índia, como descobririam os inquisidores em tempo devido.
    
Um prazer inigualável para Vieira era, então, converter mundanos aos desígnios dos Céus. Desde jovem, aluno excepcional, fora capaz de transformar a pregação religiosa num palco de exaltações longinquamente comparável àquele de futebolistas atuais, cujos dedos indicadores apontam para Jesus. O padre era uma superestrela mística a que acorriam, por assim dizer, os fiéis torcedores sedentos por seu humor, pela audácia afiada de seu discurso. Ele estava certo do que dizia, de que os silogismos ganhariam entendimento imediato, de que poderia dar sempre um passo a mais.

Em Amsterdã, Vieira deixou o magnetismo de pregador de lado e se fez político, desejoso de negociar um bom futuro para o rei dom João IV. O soberano adorava o padre e parava para ouvi-lo, mesmo em ocasiões distantes daquelas em que um religioso se fazia necessário, como as orações ou o jejum. Anos depois, fiel ao monarca português, Vieira sustentou que ele ressuscitaria, inaugurando uma expectativa ainda mais audaz do que a sebastianista. O texto em que previu dom João IV ressurrecto, líder de um império mundial, foi usado pelo Santo Ofício para se apossar de Vieira durante quatro anos de interrogatórios.

Era solitário o padre. E precavido. Se seus votos não permitiam que acumulasse terras, não via problemas em aceitar títulos de propriedades para os parentes. Todas as contradições se faziam no personagem singular. Por exemplo, ele defendia que os índios da nação brasileira fossem libertos do jugo comercial escravista, mas queria que permanecessem subordinados às intenções jesuíticas.
Vieira comprou brigas dessa natureza com os comerciantes que não queriam pagar por escravos negros e com os mandatários do Senhor, que não admitiam perder o confisco de bens dos presos pela Inquisição. Parece que assim, destemido, exercitava ainda mais a verve literária de orador, conforme sugere o luso-brasileiro João Lúcio de Azevedo (1855-1933).

Em 1918, João Lúcio, também autor de O Marquês de Pombal e a sua Época, publicou a biografia monumental História de Antônio Vieira pela editora Clássica, de Portugal. A brasileira Alameda Editorial, que em 2004 nos deu Pombal, traz em março deste ano este Vieira de 800 páginas, baseado na reedição portuguesa de 1932 (houve uma terceira edição naquele país 60 anos depois).

Como diz o historiador sobre o padre, numa linguagem que o mimetiza e, em alguns momentos, a supera em reviravoltas, “já fica dito que lhe não desprazia ter inimigos”. O biógrafo acredita no talento inigualável de Vieira para colecionar desafetos: “Era gozo seu”, diz. “Onde quer que chegasse, a pouco espaço rompia a batalha.”

Por exemplo, no quinto domingo da quaresma de 1655, conhecido em linguagem litúrgica como o domingo das verdades, Vieira proferiu uma queixa aos maranhenses que resistiam a liberar os índios: “A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade”. E contava uma anedota, segundo a qual, caído do Céu, o diabo desfizera-se em pedaços espalhados pelos países europeus. A língua do diabo, dizia, parara em Portugal. “Os vícios da língua são tantos que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras desse abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M: M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobre tudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente.”

Tiros para os que estavam ao lado, e também para os de cima, como no Sermão da Sexta-Feira Santa. O tema eram as palavras de Cristo ao bom ladrão, que estaria com Jesus no Paraíso. Isso, todos os reis deveriam ter em lembrança, dizia Vieira: “Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Isto é o que hei-de pregar”.

João Lúcio de Azevedo escreveu uma biografia corajosa em que Vieira ganhou interesse não somente por aquilo que a história literária reconheceu nele, mas por seu complexo e ativo perfil político. O livro o vê como pode ter sido: um religioso dividido entre a necessidade de realizar seu ofício recolhidamente, à maneira de um José de Anchieta, ou em moldes próprios, que estabelecessem o prazer do contato com ampla platéia.

Ainda há um talento óbvio narrativo de João Lúcio, observado especialmente no fim do segundo tomo, em que Vieira se vê derrotado pelo mito que dele fizeram, e que ele próprio não pôde controlar em seu benefício. No final da vida, os sermões do padre são admitidos como magníficos até pela Inquisição, mas ele próprio não tem público para as palavras novas.

Aos 86 anos, uma queda lhe torce o punho direito e ele se apressa em dizer que não responderá às inúmeras cartas recebidas. “Sem mão para escrever”, parecia estar, a um tempo, vivo e morto. Expirou na Bahia três anos depois, em 1697. No momento de sua morte, diz João Lúcio, uma grande estrela, ou facho luminoso, se acendeu no céu de Salvador.

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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