25 11 2008
Eunice Durham fez uma pesquisa. Ela analisou documentos de cursos de pedagogia. Ela concluiu aquilo que o seu próprio grupo ideológico concluiu sem pesquisar. O pessoal do PTE, Pensamento Tecnocrático da Educação, que em geral ganha expressão fácil na revista Veja, acredita que os cursos de pedagogia e de formação de professores são “teóricos”, e o que é preciso é dar aos professores uma formação enxuta que possibilite a eles ensinar o que não conseguem ensinar – todos os conteúdos da escola de ensino fundamental. É assim que Eunice pensa, e foi isso que encontrou na sua pesquisa. Chutou e foi no gol, e eis que, espantada, viu que a mesma bola que chutou caiu em suas mãos, lá no gol. Caso pudesse fazer isso na realidade, assim ocorreria, agarraria sua bola. No caso da pesquisa, conseguiu realizar essa proeza.
A pesquisa de Eunice está invalidada já desde o início. Ao menos como pesquisa. Todos nós sabemos que ninguém vai fazer qualquer retrato fidedigno do que ocorre no ensino apenas lendo o que é posto no papel para ser cumprido por faculdades. Eunice acredita. Mas ela está só, ao menos entre os pesquisadores com alguma experiência; todos sabem que no Brasil “o que está no papel pode ficar ao léu”. É claro que ao permanecer sem qualquer porto seguro na análise de textos que mostram intenções e não feitos, Eunice acaba concluindo o que a ideologia de seu grupo recomenda. E a ideologia conservadora não quer ver nada que não seja o professor ruim isolado e responsabilizado individualmente pelo seu suposto fracasso.
Agora, se a pesquisa da Eunice não vale, o mesmo não se pode dizer de sua ideologia. Ao contrário da Eunice, que não gosta de ideologia, eu aprendi que há verdades que só ocorrem pela via ideológica. Aliás, não há como conversar sem expressar todas as nossas convicções ideológicas. É um paradoxo, mas é assim mesmo que funciona. Vamos aos discursos ideológicos de todos nós, então, e vamos ver o que é que falamos que é aproveitável. Ponho as minhas cartas liberais na mesa.
A pesquisa dos membros da direita política no Brasil nunca aponta para os problemas da formação de professores que envolvam de modo decisivo elementos de planejamento de estado e de recursos. Uma verdade óbvia, que os da esquerda mostram e que, assim, agem de modo correto, é que temos professores que não conseguem dar conta do seu serviço, e isto por razões salariais. A direita torce essa verdade. Acredita que o que a esquerda está dizendo é em relação a cada professor existente, ou seja, bastaria pagar mais o professor e este mesmo professor começaria a ficar inteligente do dia para a noite. Mas não é isso que a esquerda diz, ao menos não é isso que a parte inteligente da esquerda diz ou deveria dizer. A questão não é imediata. A questão é de estratégia de política educacional: há de se tornar a profissão de professor mais atrativa financeira e socialmente e, então, teremos melhores pessoas nesse ramo em um prazo de cinco anos ou pouco mais. Reformas de cursos de pedagogia e licenciatura serão úteis quando a clientela que procurar tais cursos for uma clientela um pouco mais intelectualizada.
Agora, a direita política está correta quando lembra que há corporativismo entre os professores da rede, e que eles, não raro, se recusam a ver problema na escola em que lecionam. Não raro, usam de discursos escapistas: quando alguém aponta a falha deles, dizem que é “campanha da Globo para privatizar a escola”. Então, responsabilizam o estado por estarem mal formados e evitam tomar decisões individuais importantes para melhorar. Muitos dos alunos que irão ser professores sabem que não sabem matemática e não tomam a decisão de aprender matemática antes de entrar para cursos de metodologia do ensino de matemática, por exemplo. Também é verdade que uma boa parte dos professores, em especial os professores que formam professores, possui um discurso ideológico de esquerda que é vazio e inculto. Falam em “neoliberalismo” e “globalização” de maneira tão pomposa quanto Saramago ou Boaventura da Silva Santos ou Frei Beto, os três que pronunciam essas palavras e não sabem o que elas significam. Ou até dão significado a elas, mas um significado que seria o mesmo dado pelo Álvaro Cunhal. De fato, esse tipo de coisa é deprimente. Mas isso afeta a educação de um modo bem menor do que a direita quer fazer crer.
A direita se acha longe de ideologias. Ela não quer reconhecer que é ideológica. Mas, nessa sua cegueira, atira no que vê e acerta no que não vê. Quando Eunice, mesmo sem base, diz que os cursos de pedagogia estão voltados para “muita teoria”, ou seja, para o que as faculdades chamam de “fundamentos da educação” – história, filosofia, sociologia etc. – ela acerta em um ponto: mostra de fato que tal coisa não pode funcionar. Caso ocorresse, não funcionaria. Nunca funcionou. Isso não ajuda. Ao menos não ajuda neste nível de ensino, o de uma formação curta e rápida, como é a pedagogia. E parece ser difícil que não seja curta e rápida. Seria necessário bem mais tempo de formação para que os tais “fundamentos da educação” viessem de fato a ser apreendidos pelo futuro professor de modo a melhorar sua capacidade de fazer educação.
Todavia, o que a direita não percebe é que não é isso que ocorre, não há “teorização” nos cursos de formação de professores. Ao contrário, o que ocorre nesses cursos é exatamente o que a direita sugere que deva ocorrer. Há uma formação centrada em psicologia da aprendizagem, didática e metodologias de ensino; e isso é ministrado da maneira a mais rasteira possível. Quem faz o curso sabe disso. A direita política não sabe. Essa formação dada é ruim e estreita. E é mal feita mesmo. Mas não é pela sua tese, ou seja, em princípio, que não funciona. Não funciona porque nada funciona em um curso em que a clientela é a raspa de tacho do vestibular, e não funciona porque as faculdades que possuem o curso de licenciatura há anos foram colocadas como faculdades “de segunda” – pela sociedade, governo, empresários e pelas próprias reitorias de universidades. Foi isso que o professor Florestan Fernandes disse e insistiu no passado: no trem universitário a faculdade de filosofia, letras e ciências humanas foi posta como vagão de classe A, e a faculdade de educação ficou junto com vagões de carga, lá no fim do comboio. Esse modelo, o da USP reformada pelo regime militar, se reproduziu no Brasil; e o pior ocorreu: fora dela as próprias “faculdades de filosofia, ciências e letras” municipais desapareceram ou se descaracterizaram.
A esquerda pensa de modo a centrar fogo em questões econômicas e nem sempre faz isso alertando antes para a necessidade de melhoria no médio prazo; prefere a luta imediata, a do salário e de sua ampliação por meio de greves. A direita não percebe que essa forma de agir é legítima, e que no limite isso até pode levar os planejadores governamentais a mudar o eixo e tentar fazer algo para que a carreira de professor seja atrativa. A direita escorrega e deixa transparecer à esquerda que gostaria de ver as greves abafadas e o sindicalismo controlado. Ora, parte da esquerda até gosta disso – sindicatos cubanizados ou sovietizados.
A direita política é liberal no momento em que encontra os responsáveis pelo ensino ruim: o indivíduo é então valorizado. Ele, indivíduo-professor, ganha poderes extraterrestres de decisão – mas não decide. Ele é ruim e não decide melhorar, diz a direita. Mas a direita política é menos liberal quando aponta programas de melhoria, pois, neste caso, fala de mercado para dizer que a escola está distante dele, mas não vê que mercado é também mercado de trabalho. O mercado de trabalho para professores é ruim. Nessa hora, acaba o liberalismo da direita. Ela se esquece de que ser liberal é, antes de tudo, enriquecer o mercado para que ele possa ser o “livre mercado” – todo e qualquer mercado, o que inclui o mercado de trabalho, claro.
Na questão do mercado, a esquerda não quer se aproximar do liberalismo, ao menos em ideologia. Mas, na prática, se aproxima. Pois quer melhores salários para o consumo, para o mercado, e até gostaria de ver um mercado de trabalho mais promissor. Mesmo sendo ruim, o professor gostaria de ver o mercado de trabalho exigir mais dele. A esquerda finge não querer o mercado e, então, na falta do diálogo aberto sobre o assunto, não percebe que é por ele, o mercado, e não pela revolução esperada contra ele, que pode melhorar o ensino. Um mercado que é incentivado a ser exigente vai pedir uma mão de obra melhor em todos os setores. Tanto quanto aos professores formadores como quanto aos formados professores por tais professores universitários, os que saem do ensino médio, o que é reivindicado pelo mercado é a satisfação de exigências dadas por uma revolução industrial, tecnológica, intelectual e moral contínua no mundo atual. Falta perceber isso. Falta perceber que a revolução que devemos fazer não é a socialista, pelo fim do mercado, mas uma revolução liberal autêntica que lembre que o mercado enriquecido pede gente melhor preparada.
A esquerda que não tem ódio do liberalismo entende que o mercado não é o causador de problemas na educação, é seu solucionador. Todo nosso ensino está voltado para o mercado. Direta ou indiretamente. E muitas vezes o mercado exige mão de obra competente, inclusive do ponto de vista da competência em Humanidades e pensamento crítico. E eis que nossas escolas ficam aquém do mercado. Nisso a direita é mais realista. Mas ela também fica cega no ponto de chegada. Ela acredita que satisfazer o mercado é enfiar “ensino técnico” goela abaixo. Mas ela não entende o que é o bom ensino técnico, o verdadeiramente requisitado pelo mercado. Não percebe que a história, a geografia, o inglês e a filosofia são disciplinas tão ou mais profissionalizantes que matemática ou física. A esquerda, por sua vez, não consegue ver isso também, mas por razões ideológicas diferentes: não quer nem tocar no assunto da relação entre ensino e mercado.
Esquerda e direita não querem ver que em frente da minha casa existe uma locadora de vídeos que precisa de moças “com ensino médio” para trabalhar, e paga-se ali mais que o salário de um professor do ensino médio; todavia, a vaga não é preenchida. As candidatas não conseguem pronunciar o nome do filme. Elas não sabem contar a história do filme para o cliente, mesmo assistindo o filme dublado várias vezes. Elas não fazem idéia de que poderia ter havido algumas aulas de filosofia, história e literatura em que tudo aquilo que precisavam para poder entrar no mercado de trabalho poderia ter sido ensinado; elas não tiveram essa aula. Elas não tiveram esse necessário ensino técnico.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo