Convivendo com urubus, espantando milhares de moscas e ignorando o cheiro nauseante do chorume, adolescente vasculha o local responsável por 60% dos dejetos produzidos na capital
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Em breve momento de descanso, menina observa livro de pintar já preenchido
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Tirar férias, para algumas dezenas de crianças e adolescentes da Estrutural, traz um conceito diferente. Não é época de dormir até mais tarde ou passar horas brincando sem preocupação. Longe das salas de aula, os livros dão lugar a papéis recolhidos em montanhas de lixo. O cachorro-quente da merenda escolar é substituído por biscoito e carne vencidos descartados pelos supermercados. Que o diga Carolina*, de 11 anos. Na manhã da última terça-feira, a menina trabalhava recolhendo garrafas pet no aterro responsável por receber 60% do lixo de todo o Distrito Federal.
Sem luvas e com uma calça curta que deixava parte da perna exposta às moscas e à sujeira, ela disputava espaço com adultos entre sacos de lixo repletos de resíduos domésticos. Por causa da ausência de proteção, Carolina exibia uma crosta escura por baixo das unhas e marcas difíceis de identificar coladas a seu tornozelo. Nada disso parecia incomodar a menina, já habituada à labuta insalubre. “O pior é o tanto de moscas. É mosquito demais”, comentou a garota.
As moscas estão mesmo em todos os lugares e pessoas. Quando o caminhão chega com carga nova, a presença delas aumenta ainda mais por causa da água suja que cai do veículo enquanto os sacos de lixo são despejados. O chorume tem odor tão forte que um dos presentes resume: “O cheiro tem até sabor”. É um gosto azedo e que se fixa longamente no paladar de quem passa por ali.
No meio desse cenário, Carolina passa as férias. Ela e três primos de 13, 15 e 17 anos. Junto com a mãe dela e o casal de tios, eles se organizam em setores. Parte resgata garrafas nas montanhas de lixo enquanto outros separam as pets em sacos que serão vendidos por R$ 40 ou R$ 45, dependendo da negociação. “Estou aqui para ter dinheiro para comprar material escolar. Se não for assim não tenho como ir à escola”, resume Vinícius*, de 13 anos. A cada semana de trabalho, ele chega a tirar R$ 150.
Brinquedos dos outros No aterro da Estrutural, não tem brincadeira. Sob chuva ou sol forte, as crianças carregam sacos de material para reciclagem observadas por urubus. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) coloca essa condição entre as piores formas de trabalho. No meio do lixo, o direito de ser criança não existe. E, para as irmãs Rita* e Paula*, de 7 e 15 anos, a violação das garantias legais se dá de forma cruel.
As bonecas, sonho de consumo da infância, são encontradas no lixo e servem de ganha pão. Há um ano, os pais das meninas vão ao aterro em busca de brinquedos a serem reformados e vendidos. Cada boneca, depois de limpa e com o corpo de pano refeito, é vendida por R$ 6. “Minha mãe traz a gente para não ficarmos sozinhas.” O nariz da menina escorre e os olhos estão constantemente vermelhos e com secreção. Efeito do ácido do chorume que polui o ar.
No dia em que o Correio esteve na Estrutural, era difícil contar o número de meninos e meninas trabalhando. Onze foram abordados pela reportagem. “Tem dia que o número chega a 30”, conta Jovacir Gonçalves, chefe dos agentes de portaria. “Orientamos os pais a procurarem a equipe de assistentes sociais da empresa Valor, mas eles voltam”, comenta. A empresa que administra o aterro mantém um escritório com assistentes sociais que atuam na formação de cooperativas para reciclagem.
Razões econômicas A causa do retorno é econômica, de acordo com o próprio GDF. Numa semana de trabalho, as crianças tiram o mesmo que em um mês de programa de transferência de renda. “O máximo que o governo repassa é R$ 180. Eles tiram mais”, comenta Wagner Saltorato, coordenador do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Estrutural. Além da renda, assistentes sociais e educadores defendem a oferta de atividades extras para a meninada. Mas o convênio do governo com as 107 instituições socioeducativas que atuam no DF ainda não foi renovado este ano. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda, a previsão é de que os convênios sejam renovados em fevereiro.
Para Wagner, do Creas, também colabora para a frequência de crianças e adolescentes no local a falta de fiscalização. “A responsabilidade é da Delegacia Regional do Trabalho”, comenta, jogando a bola para o governo federal. “Se crianças e adolescentes estão catando lixo obedecendo a ordens de seus pais, não há relação de emprego e, portanto, não é da competência da fiscalização do trabalho”, rebate o ministério, por meio de nota.
PROMESSA POR CUMPRIR Em maio do ano passado, o governo local anunciou que, a partir daquele mês, apenas pessoas identificadas com credencial e coletes teriam acesso ao aterro da Estrutural. Cem funcionários do GDF passariam a organizar o acesso ao local, onde são depositados 53 mil toneladas de lixo mensalmente. A área de 164 hectares seria fiscalizada para impedir a entrada de pessoas não cadastradas, especialmente crianças. A proposta falava em coletes numerados e na cor laranja, para fácil identificação. Das medidas anunciadas, a única em andamento é a formação de cooperativas de catadores de papel para iniciar o processo de coleta seletiva.
*Nomes trocados para proteger o direito das crianças e adolescentes
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