Revisitando os contínuos de urbanização, letramento e monitoração estilística na análise do português do Brasil
Profa. Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)
Universidade de Brasília
(In Dietrich, W. e Noll V. (orgs.) O Português do Brasil – perspectivas da pesquisa atual. Frankfurt:VervuertIberamerciana, 2004, p.195-201
Em outubro de 1997 apresentei o texto “A Análise do Português Brasileiro em Três continua: o continuum rural-urbano, o continuum de oralidade-letramento e o continuum de monitoração estilística” , no Colóquio Internacional Substandard e Mudança no Português do Brasil, no Instituto Ibero-Americano de Berlim. O texto foi publicado em 1998 na antologia que recebeu o mesmo nome do Colóquio e foi organizada por Sybille Grosse e Klaus Zimmermann e editada pela Editora TFM., Frankfurt am Main . Recentemente, em 2002, foi republicado na Antologia Lingüística da Norma, organizada por Marcos Bagno e editada pela Edições Loyola, São Paulo. Logo depois foi incluído também no meu livro Nós cheguemu na escola, e agora? , publicado pela Parábola Editorial, em 2005.
Nesta oportunidade procuro aperfeiçoar alguns dos conceitos ali avançados e testar a viabilidade do modelo na caracterização do perfil sociolinguístico de brasileiros.
A metodologia de três contínuos se propõe a captar mais fielmente as especificidades da variação na comunidade de fala brasileira e surge como uma alternativa para análises dicotômicas: como português padrão x não-padrão; norma culta x norma não-culta etc.
No contínuo de urbanização, que se estende desde as variedades rurais geograficamente isoladas, conhecidas genericamente como dialeto caipira, até a variedade urbana, que passou pelos processos históricos de padronização, pode-se situar qualquer falante em função da região onde nasceu e foi criado, sua história social e sua rede de relacionamentos. Enfim, neste primeiro contínuo trabalhamos com os atributos sociodemográficos e socioecológicos do falante.
Já no segundo contínuo, de oralidade e letramento, o foco não é o falante, mas as práticas sociais – orais ou letradas. Quando falamos em práticas sociais de letramento, levamos em conta, principalmente, os textos que são significativos para a comunidade, bem como os seus modos de produção e de circulação ( Ver Kleiman e Signorini, 2000). No terceiro contínuo, de monitoração estilística, podemos aferir a dimensão sociocognitiva do processo interacional, em particular o grau de atenção e de planejamento que o falante confere à situação de fala.
O grau de atenção e de planejamento está relacionado a vários fatores, tais como:
a) a acomodação do falante ao seu interlocutor;
b) o apoio contextual na produção dos enunciados;
c) a complexidade cognitiva envolvida na produção lingüística e
d) a familiaridade do falante com a tarefa comunicativa que está sendo desenvolvida.
Na produção do estilo monitorado oa falante presta mais atenção à sua fala. Esse estilo geralmente caracteriza-se pela maior complexidade cognitiva do tema abordado. Se oa falante tiver um maior grau de apoio contextual, bem como maior familiaridade com a tarefa comunicativa, poderá desempenhar-se no estilo monitorado com menor pressão comunicativa. A pressão comunicativa aumenta quando o apoio contextual é menor e a temática mais complexa.
Nesta revisita ao tema queremos, em primeiro lugar, discutir a noção de urbanização. A sociologia tradicional no Brasil enfatiza as características rurais da sociedade brasileira e nossa urbanização tardia e desordenada. Nossa urbanização é desordenada porque, ao contrário do que aconteceu no Primeiro Mundo, no Brasil e em outros países periféricos a urbanização não foi precedida pela industrialização, como nos países onde a revolução industrial teve início no século XVIII. Até início do século XX, o Brasil é considerado um país rural. Para citar apenas alguns exemplos de textos sociológicos que se detêm sobre a vocação agrária do Brasil, lembremos Antônio Cândido, 1964, Os Parceiros do Rio Bonito; Sérgio Buarque de Holanda, 1936, Raízes do Brasil, em especial o capítulo “Herança rural”; Darcy Ribeiro, 1995, O Povo Brasileiro, em especial a seção “O Brasil caipira”; Ruben Oliven, 1982, Urbanização e Mudança Social no Brasil, entre outros.
Em meu trabalho com migrantes rurais radicados na periferia de Brasília (Bortoni-Ricardo, 1985), mostrei como a população de origem rural que vive à margem do sistema de produção mantém características culturais pré-migratórias. Sua inserção na cultura urbana é gradual e depende, em grande escala, de sua rede de relações sociais e de sua familiarização com práticas sociais de letramento.