A relação que tivemos com os professores e aquilo que com eles aprendemos nos moldam e determinam nossos sonhos e aspirações
Muita paciência e dedicação ao outro. Saber caminhar no ritmo do outro. Estes são os talentos que mais admiro nos professores que trabalham com crianças e adolescentes. Talentos que não são propriamente os meus. E dos quais, aparentemente nós, docentes universitários, estamos dispensados.
Há uma expectativa comum de que quando um jovem entra para a universidade, seu perfil de estudante e de pessoa já esteja consolidado pela formação anterior. Uma tarefa que se considera da responsabilidade da família e da escola.
Espera-se que esses jovens, cuja experiência que até então era a de receberem – a atenção, o empenho, a informação, a formação –, mudem de posição. Espera-se que eles transitem da condição de receptores para a condição de agentes de seu próprio crescimento e de sua própria aprendizagem. Em outras palavras, há uma crença geral de que quando um jovem entra para a universidade ele já aprendeu a ser autônomo, a tomar iniciativas, a ter responsabilidade.
A universidade está numa profunda e inexorável dependência do que acontece na escola, quer dizer, da formação que os jovens tiveram nela. A escola também depende da universidade, uma vez que é dela que emergem seus profissionais, mas a dependência é de outra natureza. Especialmente, porque, a meu ver, o Ensino Superior apenas complementa o que o Ensino Fundamental e Médio começaram.
Sabemos o quanto todo começo, toda origem é importante (o começo de um país, o começo de uma amizade, o começo de uma idéia, o instante do nascimento de uma perspectiva para a vida). Todo começo é um depositário das nossas heranças e bagagens. Por isso marca de forma indelével o futuro. Não há ponto de chegada que não tenha tido um específico ponto de partida.
A escola fundamental funciona como um começo. Ela é uma estrutura de origem e o que acontece nela se entranha na condição existencial dos que por ela passaram e nela viveram. O tipo de vínculo que crianças e adolescentes criam com a escola é incomparavelmente mais profundo do que aqueles que os jovens formam com a universidade. As crianças não passam pela escola. Vivem nela. Recebem dela marcas tão fundas quanto as que recebem de suas famílias. A escola torna-se um traço do seu caráter pessoal.
Esse poder da escola, certamente tem suas bases nos métodos e sistemas educacionais e administrativos que a constituem e que elas desenvolvem. Mas não são sistemas e métodos o eixo de tal poder. A alma da escola são as pessoas que nela trabalham. Em especial aqueles que estão na relação mais cotidiana e imediata com os alunos, os professores.
Quem de nós não teve seu destino pessoal e profissional inspirado por um professor? Pela simpatia, pelo carinho, ou mesmo pelo medo e aversão que tivemos por alguns deles?
Eu tinha uns 11 anos quando fiquei sabendo, numa aula de Português, que Rui Barbosa não repetia palavras num mesmo texto, mas buscava sinônimos para elas. Chicote, açoite, chibata, azorrague, chiqueirá... E foi o encantamento da minha professora com o fato que me encantou. Até hoje escrevo com um dicionário ao lado, tentando seguir o exemplo do escritor.
A professora de Matemática dos meus primeiros anos escolares nos ensinava e falava da matéria com um fastio secular. Cálculos são penosos para mim, até hoje, e não vejo a hora de me livrar deles quando tenho alguma conta para fazer.
Entrei na escola sabendo ler e escrever e meus colegas de turma ainda precisavam ser alfabetizados. A professora percebeu que seria um tormento para mim voltar para a cartilha e, sabiamente, me dava como tarefa ajudar meus companheiros no caminho das letras. Não teriam sido o cuidado e a sensibilidade dela as sementes da minha profissão?
A qualidade do exemplo
A relação que tivemos com nossos professores e aquilo que com eles aprendemos, atenta ou distraidamente, molda nosso ser. Determina nossos sonhos e aspirações, tanto quanto nossos interesses e comportamentos mais corriqueiros. São nossos primeiros modelos e, assim como nossos pais, nos aparecem como aquelas pessoas que gostaríamos (ou não) de ser.
Numa universidade, os professores também são modelos e inspiração para os alunos, pela condição genérica de que pessoas sempre são exemplos para outras. Mas na escola essa relação é mais determinante. Em comparação com os universitários, que bagagem e experiências as crianças e os adolescentes têm para poder acreditar ou duvidar, para aceitar ou recusar o que lhes é oferecido? Que história têm eles, a não ser aquela que ainda estão forjando junto aos seus familiares, mas também junto aos seus professores?
Ao contrário de todas as demais criaturas vivas, com as quais compartilhamos a vida, não nascemos prontos. Abelhas já nascem sabendo ser abelhas, mas os homens não nascem sabendo ser humanos. Ser um homem e ser o indivíduo exclusivo que cada um de nós é, está para ser aprendido e construído.
As crianças e os adolescentes estão aprendendo a ser pessoas, obviamente, com as pessoas com as quais convivem. Daí que a qualidade do exemplo que pudermos oferecer a eles é mais do que fundamental. Que tipo de pessoas estamos sendo? Como estamos nos ocupando do mundo e dos outros com os quais convivemos? Como cuidamos de nós mesmos? Como tratamos o viver? Que modelo de homem e mundo queremos e realizamos através das nossas palavras e ações?
Respostas a essas perguntas o educador tem de dar tendo muita clareza sobre o mundo em que vive: sua feição, tendências, seus entraves e aberturas. A educação acontece instalada num mundo, atravessada e provocada pelos valores, pelos modos de ser e pelas questões nele vigentes.
Por exemplo, vivemos numa sociedade de massas, para a qual, grosso modo, o mundo é um grande mercado onde tudo se compra e tudo se vende. Consumo, portanto, e não compromisso ou responsabilidade é, para ela, o comportamento ideal para se lidar com a vida e cuidar das coisas do mundo. Nela, o homem é criado à imagem e semelhança do consumo. Ser humano é ser consumidor. Viver é consumir.
Enquanto consumidores, os homens se relacionam com o mundo no modo de tirar proveito dele, usá-lo e explorá-lo para seu prazer e saciedade. A grande implicação deste modelo de homem e de comportamento não é apenas a devastação do território do mundo que promove, a exemplo do aquecimento global, que hoje se apresenta como a mais séria ameaça à nossa sobrevivência. A grande implicação é que esse modelo de homem e de ação no mundo atinge de forma arrasadora o coração da nossa própria condição humana que, como bem expressa Martin Heidegger, é a de sermos “cuidadores” ou “pastores do ser”.
Cuidar, arcar com a responsabilidade pelo mundo ou para com a existência, em termos gerais, é o modo de ser essencial de nossa humanidade. Restaurá-lo e fortalecê-lo me parecem ser os principais desafios da educação atual.
Permeando a educação formal está, então, a construção de uma ética fundamental e o desenvolvimento de uma educação existencial originária.
Já ouvi muitos educadores perguntarem sobre “que mundo estamos deixando para nossas crianças”. E ouvi outros perguntarem sobre “que crianças estamos deixando para o mundo”. Ambas inquietações se complementam. E ambas só podem ser respondidas, não com teorias, mas com exemplos. O mundo será o que fazemos dele agora. E nossas crianças seguirão o exemplo de nossas ações atuais.
Portanto, se quisermos ser educadores, temos de tomar uma decisão sobre uma questão fundamental: “Se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele...”